postado em 22/06/2009 16:38
A francesa Françoise Barré-Sinoussi, diretora da Unidade de Regulação de Infecções Retrovirais do Instituto Pasteur (em Paris), e o norte-americano Robert Gallo ; fundador do Instituto de Virologia Humana da Faculdade de Medicina da Universidade de Maryland - entraram para a história da medicina em 1983. Com o também francês Luc Montagnier, eles descobriram e isolaram o HIV, vírus causador da Aids. Françoise e Montagnier cultivaram células de linfonodos de pacientes que apresentaram nódulos característicos do estágio primário da Aids. Depois, detectaram a atividade da enzima retroviral transcriptase reversa, uma assinatura da replicação do vírus.No ano passado, os dois dividiram com o alemão Harald zur Hausen o Prêmio Nobel de Medicina, a mais alta honraria que um cientista pode receber.
Em 4 de maio de 1984,Gallo publicou uma série de quatro artigos na revista científica Science, nos quais demonstrava que o retrovírus HTLV-III era a causa da Aids. Também criou o primeiro teste de detecção da doença, por meio do sangue. Maistarde, o microorganismo seria renomeado HIV.
Em entrevista exclusiva ao Correio, por e-mail, Françoise, de 62 anos, e Gallo, 72, falaram sobre as perspectivas de cura da Aids e os mecanismos de camuflagem do vírus. A infectologista do Instituto Pasteur considerou a erradicação do HIV "muito distante" e atribuiu o pessimismo à capacidade de o vírus formar reservatórios no sistema imunológico. Gallo prefere pensar em terapias que melhorem a qualidade de vida do soropositivo.
A medicina, com todo o aparato tecnocientífico, está distante de alcançar a cura da Aids?
FRANÇOISE BARRÉ-SINOUSSI: Nós ainda estamos muito distantes da elaboração de uma cura para erradicar o vírus dentro do corpo humano. E a razão é simples. Muito rapidamente após a infecção, o vírus HIV estabelece reservatórios
em diferentes tecidos, especialmente nos órgãos linfoides. Esses reservatórios são em sua maior parte compostos de células nas quais o vírus se integra em estado latente. Por isso, os reservatórios são persistentes, mesmo em pacientes sob tratamento de antirretrovirais. Tão logo o tratamento é interrompido, algumas células são ativadas e o vírus começa a se multiplicar de novo. Toda tentativa que a pesquisa científica faz para eliminar ou controlar reservatórios falhou até agora. Na busca de definir futuras estratégias, nós devemos entender mais precisamente os mecanismos que levam ao estabelecimento e à persistência dos reservatórios de HIV.
ROBERT GALLO: É impossível responder a essa questão. Ninguém pode prever quando uma cura virá. Se ocorrer, provavelmente estará limitada a um determinado número de pessoas que ainda possam se beneficiar dela. Seria complexo livrarse das sequências virais da última célula infectada. A cura também demandaria uma comprovação por meio da necropsia dos tecidos do paciente. Não acho que devemos nos focar nisso. Um tratamento melhor, que torne a vida dos pacientes mais fácil, é algo em que devemos pensar. Por exemplo: menos resistência a drogas e menos toxicidade. Uma vacina preventiva seria a defesa ideal contra a pandemia de HIV/Aids.
Por que é tão difícil deter a proliferação da doença pelo mundo? Quais são os obstáculos para uma imunização efetiva?
FRANÇOISE BARRÉ-SINOUSSI: Uma vacina profilática seria o único meio eficiente de deter a epidemia de Aids. Muitos desafios ainda têm de ser transpostos, antes de desenvolvermos uma vacina eficaz: a variabilidade genética do HIV e sua capacidade de fugir ao mecanismo de defesa do sistema imunológico, o estabelecimento primário de reservatórios virais, a transmissão célula a célula, os mecanismos de proteção ainda indefinidos, a infecção e a alteração de elementos-chave do sistema imunológico, a bastante rápida indução de disfunções da resposta imune adaptativas e inatas, além de limitações nas pesquisas com cobaias animais.
ROBERT GALLO: São duas questões muito diferentes. Ainda não conseguimos deter a proliferação da Aids porque nem todos têm acesso à educação correta. Nem todos têm acesso a uma testagem apropriada. Nem todo mundo tem acesso a um estoque de sangue seguro durante uma transfusão. Nem todos têm 100% de acesso à terapia viral - por isso, o vírus se espalha além de altos níveis e continua a se disseminar. Nem todas as mães têm acesso a tratamentos - por isso, temos bebês se infectando em regiões menos afortunadas do mundo. Estamos encorajados de que as maiores nacionais agora estão fazendo grandes esforços nesse sentido. Em relação aos obstáculos para a imunização, temos a integração (genes virais se integram em nosso DNA e, uma vez estabelecidos, o vírus se instala "para sempre"), a variabilidade (cepas diferentes e variáveis de HIV) e os danos pesados às células do sistema imunológico.
E quais as principais barreiras para se obter uma droga capaz de matar o HIV?
FRANÇOISE BARRÉ-SINOUSSI: Se você está falando sobre a prevenção da transmissão, os microbicidas são capazes de matar o vírus. Eles têm sido amplamente testados como meios de prevenção, mas infelizmente forneceram apenas
resultados desanimadores. Isso porque eles matam o vírus e as células saudáveis, o que resulta em lesões que mais tarde favorecerão a infecção. Para a pesquisa de hoje, as dificuldades são principalmente uma questão de ciência e técnica. Nós precisamos ser mais inovadores e criativos, para que novos conceitos e novas técnicas surjam. Em relação ao acesso a tratamento e prevenção, é claro que um verdadeiro comprometimento político é essencial. Programas nacionais de informação, educação e melhora do sistema de atenção à saúde são necessários para se disseminar os resultados da pesquisa.
ROBERT GALLO: Existem muitas drogas que já matam o HIV. Mas o que elas não fazem é encontrar a última das células no corpo que hospede genes do HIV. E esses genes podem reproduzir o HIV, mesmo quando as concentrações do vírus não são tão altas ou quando a célula está em um tecido que a droga não consegue alcançar. A política pode ser um fator. As políticas foram um fator ao redor do mundo, nos estágios primários da epidemia, quando as pessoas não acreditavam que tinham o vírus ou se envergonhavam por reconhecer que tinham o vírus. Naquela época, alguns hospitais não queriam tecidos de pacientes com Aids em suas instalações e abandonavam doentes porque temiam a transmissão do vírus. É claro, isso não tem sentido, pois o HIV não pode ser transmitido facilmente. Nós também temos pessoas enlouquecidas, com teorias enlouquecidas sobre a origem do vírus. Algumas acreditam que o HIV não existe ou que ele não é a causa da Aids. No caso da África do Sul, temos políticos que impedem o tratamento da doença em seu país, porque querem unir forças com aqueles que não creem que o HIV seja causador da Aids. Na minha mente, isso é uma trapaça política e econômica conveniente. Esperamos que essas coisas estejam no fim.
Ao identificar o vírus HIV na década de 1980, a senhora imaginava que ele se tornaria um grande desafio à medicina?
FRANÇOISE BARRÉ-SINOUSSI: É claro que nenhum de nós pensava, na época da descoberta, que o vírus que havíamos isolado levaria a uma epidemia dessa magnitude. No início de 1985, nós começamos a discernir a escala da epidemia. Agora, a epidemia é global e já podemos perceber a complexidade do vírus e a interrupção que ele induz dentro do sistema imunológico. Quanto mais cavamos dentro do mecanismo do HIV, mais ele parece se tornar mais complexo.
ROBERT GALLO: Sim, porque é um retrovírus e tem as propriedades de estabelecer uma infecção permanente após entrada em uma célula, por meio de seus mecanismos de integração. E porque estávamos testemunhando, por meio de nosso teste de sangue, a presença do HIV em diferentes populações ao redor do mundo.
Segundo os últimos estudos, a infecção está decrescendo na África do Sul. Qual é a importância do uso de preservativo e da discussão de tabus sexuais?
FRANÇOISE BARRÉ-SINOUSSI: Essa é uma notícia muito boa para a África do Sul e eu devo admitir que sempre fico grata ao ouvir sobre progressos obtidos na luta contra a disseminação do vírus. Vários programas nacionais de informação, educação e acesso à prevenção têm comprovado a eficácia de se encorajar o uso da camisinha. Em Uganda, por exemplo, tais programas levaram a uma redução de 50% da prevalência antes da introdução de tratamentos antirretrovirais. Nós devemos perseguir a implementação de tais programas, bem como reforçar o acesso à testagem. Um dos maiores desafios de hoje é estimular as pessoas a fazerem o teste de HIV. Há muitas pessoas soropositivas que não sabem de seu estado sorológico. Uma condição compulsória para encorajar a testagem é o combate à discriminação, não apenas de pessoas HIV positivas como de todos aqueles que são excluídos ou que têm seus direitos negados. Eu, especialmente, penso nos usuários de drogas e nos homossexuais, que frequentemente são discriminados mundo afora. Toda pessoa tem o direito ao respeito.
ROBERT GALLO: Acho que a queda nos casos na África do Sul tem muitas causas, não apenas o uso de preservativos. Nós sabemos agora que a África do Sul tem levado o problema do HIV muito a sério e o presidente Thabo Mbeki não está mais do lado de quem crê que o HIV não causa a Aids. A educação tece uma melhora significativa. O tratamento melhorou bastante e reduziu a quantidade de vírus que pode ser transmitida. Esses são fatores principais na redução da infecção. O uso de preservativo, óbvio, ajuda. Mas em certas partes do mundo, a camisinha faz com que as pessoas possam manter relações sexuais mais facilmente e algumas vezes elas se esquecem da proteção. Mas, no geral, sou a favor da disseminação da camisinha - particularmente quando há conhecimento insuficiente sobre o estado sorológico do parceiro sexual.