Ciência e Saúde

Entrevista - Miguel Nicolelis

Um dos mais renomados pesquisadores da atualidade diz que o Brasil vive ótimo momento para investir na produção científica

Paloma Oliveto
postado em 24/08/2009 08:38
Miguel Nicolelis desce da tribuna que lhe foi reservada. Diz que, se vai falar a universitários, quer ficar no meio deles. Instantaneamente, o público aplaude com entusiasmo. Diante dos estudantes da Universidade de Brasília (UnB), com um microfone na mão e um chapéu na cabeça, está um dos 20 maiores cientistas da atualidade, segundo a comunidade internacional. Os títulos - mesmo sendo cotado para se tornar o primeiro brasileiro a ganhar o Prêmio Nobel - não parecem impressionar o paulistano, formado em medicina pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-graduado em neurofisiologia, nos Estados Unidos. Um estudante pergunta se deve chamá-lo de professor ou doutor. "Me chame de Miguel". Na sexta-feira passada, Nicolelis enfrentou um calor de quase 30ºC para ministrar uma aula aberta no teatro de arena da UnB. Falou sobre a arte de desafiar o impossível. Um assunto que conhece muito bem. Professor da Universidade de Duke, na Carolina do Norte, ele conta que suas ideias já despertaram muita desconfiança daqueles que as consideravam apenas um sonho. Mas o cientista já deu provas de que nenhum sonho é tão grande a ponto de não ser realizado. Um de seus experimentos mais conhecidos pelo mundo foi fazer com que uma macaca movimentasse, por meio de impulsos cerebrais, um robô. O animal estava nos Estados Unidos. A máquina, no Japão. Outra impossibilidade driblada por Nicolelis foi criar, na periferia de Natal, o Instituto Internacional de Neurociências Edmond e Lily Safra, um centro de referência mundial de pesquisa e educação científica. Além dos experimentos médicos - atualmente, sua equipe trabalha com macacos portadores do mal de Parkinson -, a instituição faz um trabalho de iniciação científica com mil crianças das escolas púbicas da capital potiguar. Na prática, os estudantes do ensino fundamental aprendem ciência e cidadania. Agora, Nicolelis pretende ampliar esse público e levar a experiência a todo o Brasil. Por enquanto, tem os convites dos governos da Bahia e de Santa Catarina. Para ele, apesar da burocracia, que desestimula a produção científica no Brasil, esse é o melhor momento para se investir na ciência. "O desenvolvimento financeiro do país propicia um salto qualitativo muito grande no uso da ciência como agente de transformação social". Em entrevista ao Correio, ele lembra que, para dar esse salto, é preciso investir em educação e aproximar a academia da comunidade. "É fundamental que a produção intelectual da universidade, mesmo a mais abstrata possível, volte para a sociedade". A hora do salto O Brasil teve Santos Dummont, além do imperador D. Pedro II, que era um homem muito visionário. O que aconteceu para que o país deixasse de investir na sua vocação para a ciência? Realmente D. Pedro II tinha muito interesse em ciência, mas o Brasil, naquela época, não era ainda um país, não se configurava como uma nação. Hoje é uma nação. O potencial humano é o principal motor de um projeto nacional científico, e o Brasil tem a criatividade e o talento. Ele precisa investir e desburocratizar a disseminação da produção do conhecimento de ponta. Por isso, nós fomos para Natal, para mostrar que é possível fazer isso. Agora, os mecanismos de fomento científico no Brasil são extremamente burocráticos, leva meses para você conseguir executar qualquer coisa. Isso desestimula a produção científica? Isso gera uma dificuldade muito grande. Nós tínhamos de ter atividade científica fora das universidades, tínhamos de aproveitar o talento de inventores, de pensadores. Ter um grande banco de inovação científica. O senhor tem perspectiva de que isso ocorra? Sim, claro. Existem muitas perspectivas. O problema é realizar. Mas este é o melhor momento da ciência brasileira, sem dúvida nenhuma. É um momento em que a gente tem de capitalizar, porque a conjuntura internacional e o desenvolvimento financeiro do país propiciam um salto qualitativo muito grande na produção científica e, mais do que isso, no uso da ciência como agente de transformação social, o que é vital. No último Pisa (sigla, em inglês, para Programa Internacional de Avaliação de Alunos, prova aplicada em estudantes de 57 países), os alunos brasileiros ficaram entre os piores em ciências. É preciso uma revolução na educação para que ocorra esse salto qualitativo da produção científica? Ela já começou com essa administração do MEC (Ministério da Educação), que é a melhor desde que eu nasci. No nosso projeto de Natal, ela começa intraútero. Ou seja, no pré-natal das mães dos nossos alunos, que entram na escola dentro da barriga da mãe. Para você ter uma revolução educacional, você tem de ter uma revolução de saúde. Permitir que esses indivíduos nasçam com todo potencial humano. Então, você tem de dar condições para que as mães tenham uma gravidez sadia, aprendam a cuidar de uma criança e entendam a importância da educação continuada desde o nascimento. Acho que o Brasil vai ser um grande pioneiro nisso. O senhor acredita que é possível aplicar o projeto realizado em Natal em grande escala, ainda mais em um país tão grande e cheio de diferenças como o Brasil? Sem dúvidas. É uma decisão política. Essa é uma questão para a qual você tem de achar dinheiro. E eu acho que é exatamente o que está acontecendo hoje nas políticas do MEC. O MEC está aplicando uma dezena de iniciativas pelo PDE (Plano de Desenvolvimento da Educação) que vão ter um impacto gigantescos no Brasil. E a nossa é uma dessas pequenas iniciativas de produção científica, que é um modelo criado no Brasil, não há nada igual no mundo. Nosso objetivo sempre foi disseminá-lo pelo país inteiro. Natal é o primeiro de múltiplos empreendimentos. Nós já estamos indo para a Bahia, para Santa Catarina, temos planos de ir para outros estados, mas precisamos evidentemente ser convidados e ter o apoio público desses estados. Os administradores estaduais têm de aprender que a educação é uma prioridade de cada um deles, porque a transformação econômica do país depende dessa revolução na educação. O senhor acredita que as universidades estão distantes da sociedade? Estão muito. Elas têm de abrir as portas. Existe uma tendência de se enclausurar na universidade, como se fosse um grande mosteiro, mas estamos no século 21, e os mosteiros saíram de moda. O sacerdócio deixou de ser uma profissão interessante. O que a sociedade precisa é de uma universidade totalmente aberta, que incorpore o conhecimento, a inteligência popular e que retorne para a sociedade o produto do trabalho feito com recursos públicos. É fundamental que a produção intelectual da universidade, mesmo a mais abstrata possível, volte para a sociedade, pois alguém sempre vai achar uma aplicação para ela. Nos Estados Unidos isso funciona bem? Não, não funciona bem para a comunidade, mas funciona para o país. Existe um retorno econômico muito grande. Mas estou falando de outro tipo de retorno, o social. A universidade tem de ser um agente de transformação, precisa contribuir para a solução dos problemas sociais do país. Lá em Natal, por exemplo, nós temos um problema gravíssimo, que é a de falta de saneamento básico. Os engenheiros da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) tinham de ser os primeiros a achar uma solução de baixo custo e que permitisse que a cidade inteira fosse saneada. Os exemplos são muitos. E na questão educacional, o conhecimento acumulado de uma universidade tem de contribuir para o sistema de educação pública das crianças antes da universidade. Porque o talento que é formado aqui (na universidade) precisa capilarizar pelo entorno. A maioria dos estudantes se forma nas federais e depois vão trabalhar em empresas privadas. O senhor acha que é um desperdício para o país, já que estudaram graças ao dinheiro público? Mas mesmo esse caminho pode ter um retorno para o país. O que não pode é a universidade se fechar em si mesma, produzir coisas que só interessam para ela, de um nível completamente removido de qualquer projeto futuro, de compartilhar o conhecimento com a sociedade e ficar nisso. Como um professor meu dizia: %u201CA tendência é a gente estudar o tudo do nada%u201D. A gente fica cada vez mais especializado em estudar coisas que não têm interesse nenhum ou que têm interesses extremamente remotos para o resto do país, que é quem paga a conta. Por que as universidades são tão herméticas? Por uma questão de cultura. As universidades vêm dos monastérios medievais. Os membros da academia sempre foram membros da elite, da aristocracia, do clero, e existe essa tendência natural de se colocar fora da sociedade. Isso é uma tendência que evoluiu penosamente até o limite e deve agora ser revertida. A universidade do futuro é a universidade da sociedade, do povo brasileiro. Como estão as pesquisas desenvolvidas por sua equipe em relação ao mal de Parkinson? Estão indo para frente. Inclusive aqui no Brasil. Com as nossas colaborações em Natal, elas estão evoluindo, e muito em breve acho que a gente vai ter boas notícias sobre novas terapias para uma série de patologias. Ouça trecho da entrevista com Miguel Nicolelis

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