O Brasil praticamente esqueceu a poliomielite. Erradicou a doença, transmitida pelo poliovírus, em 1989. Hoje, pouco se escuta falar da paralisia infantil, a não ser nas campanhas anuais de vacinação contra a doença. O fantasma da pólio, no entanto, ronda pessoas que contraíram o vírus no passado. É a síndrome pós-poliomielite (SPP), uma disfunção neurológica, degenerativa e incapacitante, ligada à paralisia infantil. Ela se manifesta, em média, 15 anos depois de a pessoa ter contraído pólio, chega silenciosamente e é facilmente confundida com outras doenças.
A síndrome pode ser descrita como uma desordem do sistema nervoso motor. Ela está relacionada à sobrecarga dos músculos e das articulações (ver arte). Os neurônios motores sofrem uma espécie de esgotamento, devido ao grande trabalho que tiveram para recuperar movimentos do corpo perdidos com a infecção pelo vírus da pólio. Os sintomas mais comuns são fraqueza e dor muscular e articular, fadiga, insônia, além de novas dificuldades em realizar atividades diárias, principalmente as relacionadas com a mobilidade.
Segundo o neurologista e diretor do setor de Investigação em Doenças Neuromusculares da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Acary Bulle, os indivíduos que tiveram pólio na infância, mesmo aqueles que não ficaram com sequelas aparentes, devem estar atentos. ;Qualquer alteração nas atividades diárias que faça com que elas se tornem esgotantes, em que os músculos pareçam não aguentar o esforço feito antes, deve ser investigada;, alerta. Bulle chama a atenção também para sintomas como insônia, fadiga e quedas.
Um dos agravantes, porém, é justamente o desconhecimento dos profissionais da saúde em relação à doença. Frequentemente, seus sintomas são confundidos com estresse e depressão, o que faz com que o diagnóstico demore e a doença piore. A explicação mais plausível para esse desconhecimento é o fato de que a poliomielite, por ser uma doença erradicada no país, foi praticamente banida do currículo das escolas de medicina brasileiras. ;Os médicos não estudam mais a pólio e, com isso, não há pesquisas sobre ela e sobre males relacionados;, diz Bulle.
Trinta hipóteses
Eliana de Aquino, 47 anos, esbarrou na falta de informação dos profissionais da saúde para diagnosticar a SPP. Ela teve paralisia infantil com 1 ano e três meses e ficou sem os movimentos da perna esquerda. Ainda criança, fez o programa de reabilitação para pacientes de pólio e com isso conseguiu ter uma vida normal. Em 2003, um simples ato diário mudou os rumos de sua vida. ;Fui abrir uma porta e quebrei a perna sequelada em três partes. Achei aquilo muito estranho, mas segui em frente com a vida.;
Depois desse incidente, contudo, as atividades do dia a dia foram ficando mais difíceis. ;Percebi que havia algo errado porque me sentia muito cansada. O simples ato de arrumar a casa estava ficando difícil;, lembra. Foi então que Eliana começou sua peregrinação em busca de uma explicação para o que estava acontecendo com seu corpo. ;Os médicos achavam que era osteoporose, depressão. Fiz exames para afastar 30 doenças, até meu endocrinologista me encaminhar para o doutor Acary Bulle;, diz. O diagnóstico foi dado em 2007, quatro anos depois das fraturas.
Para aliviar os sintomas e melhorar a qualidade de vida, Eliana teve que reavaliar sua rotina, a começar por sua locomoção. A servidora do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) também precisou se aposentar. ;É importante entender que a SPP é uma doença neuromuscular, portanto a ordem para os pacientes é economizar energia muscular para não cansar ainda mais os neurônios debilitados;, explica o neurologista Acary Bulle. Para tanto, Eliana adotou um carrinho motorizado a fim de se locomover.
Entre outras formas de minimizar os sintomas da SPP, estão atividades feitas dentro da água. ;A orientação é de que os pacientes façam exercícios somente na água. Os indicados são hidroterapia em piscina aquecida e temperatura controlada, pois quem sofre da síndrome também tem intolerância ao frio;, afirma o neurologista.
Sintomas agravados
Foi justamente a intolerância ao frio que deu o sinal de alerta a Roberto Medeiros, 57 anos. O professor teve pólio com 5 anos e ficou com uma sequela na perna direita, mas nada que o atrapalhasse ou o deixasse dependente. Quarenta anos depois, porém, um incômodo durante o banho começou a se tornar frequente. Medeiros sempre gostou de tomar banho frio e isso começou a se tornar um problema. ;Era terrível entrar na água fria, meu corpo, minhas articulações doíam muito. Ficou insuportável;, conta. Em seguida começaram as quedas. A perna do professor não suportava o peso e fazia com que ele perdesse o equilíbrio e caísse. ;Meu joelho dobrava sem meu comando;, diz. Medeiros conta que os sintomas foram se agravando e outros foram aparecendo. Insônia, dificuldade de concentração, dores de cabeça pela manhã faziam parte da vida diária do professor. ;Não achava uma relação entre esses sintomas. Eram fatos soltos, mas que estavam tornando minha vida um problema.;
O professor achou que pudesse ser poliomielite novamente e buscou ajuda em um hospital de Belo Horizonte. Lá, foi submetido ao tratamento de reabilitação recomendado para pacientes com pólio. Faziam parte do programa natação e exercícios em academia para fortalecer os músculos. Tudo o que Medeiros não deveria fazer. Como resultado, os sintomas se agravaram de tal forma que era insuportável fazer qualquer atividade física. ;Os profissionais da saúde são completamente desinformados. Eles não faziam ideia do que estava acontecendo comigo. Minha perna direita estava paralisada e eles me mandavam fazer mais atividades.;
Foi então que o professor tomou conhecimento do estudo feito sobre a SPP na Unifesp e resolveu procurar outra forma de ajuda. Medeiros fez exames neurológicos e foi diagnosticado com a SPP. Devido a essa situação que ambos viveram, Eliana e Roberto ; com o Núcleo de Doenças Neuromotoras da Unifesp ; lutam para criar, em parceria com o Ministério da Saúde, cursos capacitantes para profissionais de saúde.
Doença é nova
A SPP é classificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como nova. Seu Código Internacional de Doença (CID) só foi divulgado em 2008, mesmo tendo o primeiro caso diagnosticado em 1875. O reconhecimento só foi possível nos anos 1980, quando surgiram trabalhos científicos nos Estados Unidos. No Brasil, existem poucos estudos sobre o mal, mas o número de pacientes com queixas relacionadas aos sintomas da SPP vem aumentando.
Em 2002, o neurologista e diretor do setor de Investigação em Doenças Neuromusculares da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Acary Bulle, ficou intrigado com as constantes queixas de pacientes que tiveram paralisia infantil. Eles apresentavam novos problemas musculares e de cansaço. ;Achava tudo aquilo estranho, pois eles haviam se reabilitado das sequelas da pólio. Algumas eram até competidores físicos e estavam perdendo os movimentos, a força.; O médico, então, pesquisou a literatura médica e encontrou relatos parecidos.
Em 2002, o ambulatório de Doenças Neuromusculares da Unifesp fez uma pesquisa com 52 sobreviventes da pólio. De 2003 a 2004, foi realizada outra, com 167 pacientes. Ambas constataram que cerca de 60% dos indivíduos tinham os sintomas da síndrome pós-pólio. ;A pólio era uma coisa resolvida, por isso não havia preocupação. Depois dessas pesquisas, fomos levados a estudar profundamente a SPP;, lembra o neurologista. Hoje, apenas a Unifesp é referência, no Brasil, no atendimento aos pacientes que sofrem desse mal. ;São 870 que atendemos no centro. Mas creio que mais pessoas tenham a SPP e não façam ideia disso;, diz Bulle.