postado em 29/10/2009 08:00
O momento soou como magia. Foi um daqueles instantes que provavelmente eles contarão para os netos. Diante de seus olhos, os sinais da morte de uma estrela ocorrida 13 bilhões de anos atrás. Mas o choque naquele 23 de abril de 2009 deu lugar à satisfação de que suas observações estavam corretas. O britânico Nial Tanvir, da Universidade de Leicester (Reino Unido), e o italiano Ruben Salvaterra, do Instituto Nacional de Astrofísica (em Milão), acabavam de visualizar uma explosão de raio gama tão distante que, para ser identificada, exigiu o uso de um satélite, três grandes telescópios terrestres e um espectroscópio, instrumento que separa a luz e seus comprimentos de onda. Era proveniente de uma época na qual o universo contava com apenas 630 milhões de anos.Em entrevista ao Correio, Tanvir explicou que ele e seus colegas começam a explorar a última lacuna em branco do cosmos, o intervalo entre o big bang (a explosão que deu origem ao universo) e a formação das primeiras galáxias ; a chamada ;era sombria;. ;Agora, esperamos ser capazes de aprender o bastante sobre esse período para entender as grandes forças físicas em jogo e decifrar com o que se pareciam as primeiras estrelas. Quão grandes elas eram? Quanto de radiação produziam? Que efeitos tinham sobre seus ambientes? Se pudermos juntar tudo isso, teremos um panorama claro do nascimento das galáxias e da origem do universo;, afirmou, por e-mail.
A descoberta cura a cegueira da astrofísica e da astronomia em relação a uma era cosmológica antes inacessível. Para obter o registro histórico e inédito, foi preciso paciência e perseverança. As explosões de raios gama emitem todas as formas de luz ; além da luz visível, a infravermelha, ultravioleta, raios X e rádio. Como algumas dessas radiações são absorvidas pela morte da estrela, tornam-se quase invisíveis à ciência. Os especialistas utilizaram o satélite Swift, da Nasa (agência espacial dos Estados Unidos), para detectar o flash luminoso e de alta energia dos raios gama.
;Em média, o Swift detecta duas explosões por semana;, lembrou Salvaterra ao Correio. Para ter a certeza de que o evento era peculiar, o Swift girou e fez fotos da luz emanada no local, com o uso de raios X. O passo final foi buscar a explosão, chamada de GRB 090423, usando grandes telescópios da Terra. ;Ela foi detectada, em luz infravermelha, pelo Telescópio Infravermelho do Reino Unido e pelo Gemini-North Telescope, no Havaí, além do Telescópio Gigante do Observatório do Sul da Europa, situado no Chile;, acrescentou Tanvir.
De acordo com Salvaterra, o fato de a GRB 090423 ter sido captada apenas por detectores sensíveis à luz infravermelha sugeriu-lhes que se tratava de um objeto muito distante. ;Faltava a coisa mais importante: uma medição precisa dessa distância. E a melhor forma de medir a distância de uma fonte cósmica é obter o espectro dela, por meio do prisma;, explicou o italiano. Nas Ilhas Canárias, o Telescópio Nacional Galileo, com 3,6m de diâmetro, realizou essa aferição por meio de um prisma e de uma câmera sensível ao infravermelho. ;O equipamento não detectou qualquer sinal de comprimento de onda azul, o que indica que a explosão foi bem longe. Percebemos que a luz proveniente da GRB 090423 sobreviveu à absorção intragaláctica e converteu essa informação em medida de distância da Terra;, acrescentou.
O fenômeno, que é conhecido como desvio para o vermelho(1), indicou o quanto os cientistas estavam olhando para trás no tempo. Segundo Tanvir, o desvio mostrou a fração de sua idade atual, em relação à idade do universo no momento em que se deu o ;flash da explosão;. ;Essa fração era de cerca de 4,6% ; como o universo tem 13,7 bilhões de anos, isso significa que a explosão ocorreu quando o cosmo tinha apenas 630 milhões de anos;, disse o britânico, principal autor da pesquisa publicada hoje na revista científica Nature. ;Essa é a mais antiga e distante fonte astrofísica já observada;, emendou Salvaterra, coautor do estudo.
[SAIBAMAIS]Para chegar a um dos mais fascinantes achados da astronomia, Tanvir e seus colegas precisaram fazer medições espectroscópicas que duraram 17 horas, a contar da observação da explosão. ;Quando os dados foram analisados, eu estava há 30 horas sem dormir;, contou o britânico. Isso porque era preciso estar pronto a cada momento e trabalhar com a hipótese de que a explosão poderia ter ocorrido nos mais longínquos pontos do universo. Um momento de descuido seria suficiente para ignorar o brilho de uma descoberta.
1 - Frequência
O desvio para o vermelho é a alteração no modo como a frequência das ondas de luz é observada no prisma, em função da velocidade relativa entre a fonte emissora e o receptor observador. A luz azul é absorvida pelas galáxias que estão no caminho até a Terra e somente os comprimentos de onda vermelhos sobrevivem a essa absorção. Quanto maior é a distância de um objeto celeste, mais avermelhado é o comprimento de onda do qual os cientistas podem ;ver; a luz.
Lacuna preenchida
A explosão GRB 090423 lança luz sobre a era sombria do universo, até então um mistério. Depois da grande explosão que originou o cosmo, imaginava-se que o espaço estivesse preenchido com um gás muito suave, que gradualmente se expandiu e resfriou. Cerca de 100 milhões ou 200 milhões de anos depois, algumas estrelas começaram a se formar dentro desse ambiente gasoso. ;A era que antecede e que compreende a formação das primeiras estrelas é chamada de era sombria porque inexistiam fontes luminosas e pelo fato de a radiação das novas estrelas terem ionizado o gás entre as galáxias, tornando algumas formas de luz mais transparentes;, comentou Nial Tanvir, da Universidade de Leicester.
Até então, os cientistas precisavam se focar nas propriedades das galáxias para ;enxergar; o momento em que o universo tinha 1 bilhão de anos. ;As explosões de raios gama nos oferecem uma rota nova para vermos algumas das estrelas mais tênues e distantes diretamente e descobrir com o que o universo se parecia;, acrescentou Tanvir. Será possível mensurar a quantidade de hidrogênio que vagava no universo em forma neutra e se havia algum elemento ao redor, além do hélio. O britânico explica que as primeiras gerações de estrelas teriam ionizado o hidrogênio e produzido outros elementos, como o oxigênio e o carbono, precursores da vida na Terra.
Do ponto de vista observacional, a ciência possui dados sobre o estado do universo cerca de 300 mil anos depois do Big Bang. Os mapas da radiação cósmica de fundo em micro-ondas, obtidos pelo satélite WMAP, ofereceram esse panorama. Por outro lado, o supertelescópio espacial Hubble e o equipamento Sloan Digital Sky Survey ofereceram uma visão geral do universo quando ele tinha apenas 1 bilhão de anos. ;A descoberta da GRB 090423 completa, pela primeira vez, o vácuo entre essas duas observações, permitindo acesso a uma era ainda inexplorada da história do universo;, comemorou Ruben Salvaterra.
Segundo o cientista italiano, a GRB 090423 fornece à ciência um vasto banco de dados sobre o cosmos. ;As explosões de raios gama surgem da morte de grandes estrelas. Sua observação fornece uma informação fundamental sobre as regiões nas quais essas estrelas se formam;, disse Salvaterra. ;Também podem ser usadas como um farol para a busca de galáxias muito distantes e para o estudo do gás durante as eras cósmicas sombrias;, acrescentou. Além de responder a várias questões em aberto sobre a formação das primeiras estrelas e galáxias e sobre o processo que levou à reionização cósmica, a GRB 090423 permitirá aos cientistas testarem previsões de modelos sobre a origem do universo.