Paloma Oliveto
postado em 07/11/2009 08:10
Aos 15 anos, Wanderlei Cento Fante foi internado num sanatório. Ficou no local durante três meses, por recomendação de um psiquiatra. O motivo: sentia dores intensas no corpo, ardência nos pés e nas mãos, cansaço e não suportava o calor. O problema era que todos os exames médicos apontavam que não havia absolutamente nada de errado com ele. O que o psiquiatra e os pais de Wanderlei desconheciam era que o problema não estava na mente. Ele é portador de um mal raro, comumente ignorado até no meio médico, a doença de Fabry (1).Hereditária e progressiva, a doença afeta aproximadamente 1 em cada 117 mil indivíduos, mas, por ser de difícil diagnóstico, provavelmente é subnotificada. ;Os sinais não são claros e nem todos os médicos conhecem o problema. Acredito que a representação numérica possa ser maior;, diz Roberto Giugliani, professor de genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e diretor do Centro Colaborador da Organização Mundial de Saúde (OMS). O médico é um dos maiores especialistas da doença.
O sofrimento de Wanderlei, hoje com 49 anos, só começou a ser suavizado há seis, quando iniciou o tratamento médico. Agora, chegou ao Brasil uma segunda opção de terapia de reposição enzimática, aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O medicamento, do laboratório Shire, foi desenvolvido com uma linhagem de células humanas e, devido à concentração da substância ativa, o tempo de infusão dura cerca de 40 minutos, sendo mais rápido que o remédio já existente no mercado. De acordo com Giugliani, ambas as terapias apresentam boa melhora nos sintomas, podendo até mesmo fazer regredir os danos provocados no organismo. A cura, porém, é algo ainda distante. ;O importante é que existe tratamento;, lembra.
Isolamento social
A doença de Fabry é consequência de um cromossomo X defeituoso, e caracteriza-se pela falta ou deficiência de uma enzima, a alfa-galactosidase A, que decompõe os lipídeos no corpo. Por isso, o organismo começa a acumular gordura e outras substâncias não degradadas, o que afeta vários órgãos. Os pacientes podem ter problemas de pele, no ouvido, nos olhos, no coração, no cérebro e, principalmente, nos rins. Isso sem contar os incômodos que afetam o dia a dia e afastam as pessoas do convívio social.
Wanderlei, por exemplo, deixou de estudar na quarta série do ensino fundamental, pois não suportava mais os sintomas. ;Tive uma infância de muitas limitações e fui obrigado a abandonar a escola;, conta. ;Quando faltava aula, apanhava. Os médicos diziam que era preguiça, que era manha, e meus pais não conheciam a doença;, diz. Aos 30 anos, ele recebeu o diagnóstico de uma dermatologista, depois de ter peregrinado por mais de 100 consultórios. Por causa de pintas vermelhas que acometem os portadores da doença, Wanderlei procurou a especialista, que tinha acabado de estudar sobre Fabry.
Na época, porém, não havia tratamento. ;Fiquei perambulando a vida toda atrás, mas achava que nunca iria conseguir;, diz. Com apenas 40% da função renal ativa, ele também precisou parar de trabalhar. Apesar das limitações, Wanderlei considera ;um milagre; o fato de, aos 49 anos, ainda estar vivo. Pessoas que têm a doença mas não fazem tratamento morrem, em média, aos 40. Com atenção médica adequada, contudo, embora não alcancem a cura, os pacientes vivem mais e sofrem menos.
Atualização
A neuropediatra Denize Bomfim, que trabalha no Hospital Materno Infantil e é professora da Universidade de Brasília, diz que, no Distrito Federal, já foram realizados cursos de atualização com pediatras e neurologistas, e a proposta é informar outros especialistas sobre a doença. Com isso, o diagnóstico pode ser precoce, evitando o sofrimento e os danos graves ao organismo. Ela explica que os sintomas costumam aparecer no fim da adolescência, quando a quantidade de gordura acumulada começa a afetar os órgãos. Porém, como nasce com a doença, a pessoa pode ter manifestações ainda na infância. Para identificar o problema, os médicos devem ficar atentos a queixas frequentes de dores nas extremidades do corpo, formigamento e dores abdominais sem causas aparentes.
A médica conta que situações como a de Wanderlei, que chegou a ser internado num sanatório, são frequentes. ;Muitas vezes, os pacientes são tratados como se tivessem transtornos psicológicos;, diz. Ela ressalta a importância de se dar atenção maior às queixas sobre dores. ;Na medicina, é muito difícil abordar a dor do paciente. Mas esse é o nosso princípio: curar as doenças e sanar as dores. Para isso, é preciso entender nossos pacientes. Uma boa relação com eles é fundamental, mas algo muito complicado no mundo moderno;, diz.
Denize se preocupa também com o fato de os medicamentos disponíveis para o tratamento de Fabry serem caros e não estarem cobertos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A opção, hoje, é entrar na Justiça para obrigar o Estado a pagar a conta. ;É importante que as pessoas conheçam mais sobre a doença, até para os gestores entenderem o porquê de estarem pagando pelo tratamento;, diz. Wanderlei, que fundou a Associação Brasileira de Pacientes Portadores da Doença de Fabry e seus Familiares (Abraff) em 2003, só conseguiu o tratamento por ordem judicial. ;Com a associação, nós procuramos encaminhar as pessoas para os serviços existentes e orientá-las sobre como conseguir os medicamentos. A vida da gente não tem preço;, diz.
1 - Descoberta em 1898
Segundo a Associação Brasileira de Pacientes Portadores da Doença de Fabry e seus Familiares (Abraff), o mal foi descrito pela primeira vez, com poucos meses de diferença, por dois dermatologistas que trabalhavam em diferentes locais: um na Inglaterra e o outro na Alemanha, em 1898. O alemão Johannes Fabry teria examinado seu primeiro paciente em abril de 1897, e o britânico William Anderson, em dezembro de 1897. Por isso, embora mais comumente chamada de doença de Fabry, também é conhecida como ;de Anderson-Fabry;.