Ciência e Saúde

Pesquisador descobre área do cérebro ligada às deficiências cognitivas de portadores da síndrome de Down

Experimento com medicamentos em ratos sinaliza que problema pode ser revertido em bebês

Paloma Oliveto
postado em 19/11/2009 08:16

<center><i>Gilza: a psicopedagoga tenta, desde que a filha Sofia tinha 40 dias, expô-la a grande estimulação cognitiva. Pesquisa é nova esperança</i></center>

Há mais de 100 anos, a ciência conhece a síndrome de Down, provocada por um defeito genético caracterizado por uma cópia extra do cromossomo 21. Os mecanismos do problema, porém, não foram completamente desvendados, o que dificulta a busca por um tratamento eficaz. Um estudo realizado na Califórnia, publicado ontem na revista especializada Science, mostrou-se bastante promissor ao descobrir uma nova área do cérebro ligada às deficiências cognitivas e de memória em portadores da síndrome. Para o principal autor, Ahmad Salehi, da Stanford University School of Medicine, é um passo importante rumo ao desenvolvimento de drogas que revertam o deficit de aprendizagem dos pacientes.[SAIBAMAIS]

Com uma equipe do Lucile Packard Children;s Hospital, considerado um dos melhores hospitais pediátricos dos Estados Unidos, Salehi procurou entender por que os portadores da síndrome têm dificuldades cognitivas. Já se sabe que as crianças com Down nascem com a capacidade de aprendizado normal, mas, com o passar dos meses, começam a perdê-la. Isso acontece porque uma das características do problema é a dificuldade do portador com questões que envolvem a memória. E lembrar o que foi aprendido previamente é requisito básico para alguém conseguir assimilar informações mais complexas. Ao esquecer, por exemplo, que 2 2 = 4, a criança não tem condições de calcular operações matemáticas mais elaboradas.

De acordo com Salehi, os portadores da síndrome têm dificuldades em formar novas memórias, principalmente quando precisam usar informações ligadas ao espaço. Por exemplo, se estão andando por um shopping que nunca visitaram anteriormente, vão se perder com mais facilidade do que alguém que não possui o problema.

Essa função de assimilação espacial está ligada ao hipocampo, região do cérebro localizada entre os dois lobos temporais. Por outro lado, os portadores não têm muita dificuldade para se lembrar de informações relacionadas a cores, sons e outros fatores sensoriais, porque esse tipo de memória é coordenado por outra estrutura do cérebro, a amígdala.

Desafios
Mãe de Sofia, 4 anos, portadora de síndrome de Down, a psicopedagoga Gilza Bendita Rosa Silva, 49, conta que a menina começou, aos 40 dias de vida, a fazer estimulação cognitiva para desenvolver a capacidade de armazenar informações. Ela era colocada em contato com texturas, sons, cheiros e formas e, a partir dos 2 anos, passou a ser desafiada com jogos de encaixe e de memorização. ;É um trabalho lento, mas muito interessante;, diz Gilza. Sofia estuda na rede regular de ensino de manhã e, à tarde, participa de atividades extras, como sessões de fonoaudiologia, equoterapia, psicomotricidade, natação e terapia ocupacional.

Em casa, Gilza também procura estimular a memória da filha. ;Pergunto sobre cores, sobre personagens, coloco bastante música;, diz. Quando era bebê, Sofia também participou de uma oficina de musicalização, na Universidade de Brasília. Apesar de todos os cuidados, porém, Gilza conta que as dificuldades cognitivas de Sofia ainda são grandes. ;Ela não deixa de ter um deficit. Se for comparada às outras crianças da sala, está bem atrás. Mas ela já consegue formar frases e se relaciona muito bem com os coleguinhas;, diz.

Metodologia
Durante três anos, o pesquisador se concentrou no estudo do hipocampo. Em laboratório, criou modelos de camundongos com a estrutura de três cromossomos 21. Salehi percebeu que o foco do problema está numa região chamada locus coeruleus, relacionada, entre outras funções, às respostas ao pânico e ao estresse. Nos ratos modificados geneticamente, os pesquisadores verificaram uma deterioração bastante precoce dessa área.

Normalmente, à medida que a memória e as novas informações são formadas e processadas, o locus coeruleus envia para o hipocampo doses de norepinefrina, um tipo de neurotransmissor. Quando a estrutura está danificada, porém, a liberação da substância torna-se bastante deficiente. Os ratos que apresentaram o problema falharam em testes cognitivos simples, que exigiam deles atenção nas mudanças do ambiente. Quando os camundongos modificados eram colocados numa gaiola que desconheciam, por exemplo, eram incapazes de construir ninhos. Já os animais com os dois cromossomos normais conseguiam fazer isso facilmente.

O problema dos ratinhos foi resolvido com uma rapidez que surpreendeu Salehi. Eles receberam as drogas L-Dops e xamoterol. A primeira transforma-se em norepinefrina em contato com o organismo. A segunda liga-se com os receptores do neurotransmissor. Em menos tempo que o pesquisador imaginava, apenas algumas horas depois de receberem a medicação, os camundongos começaram a construir seus ninhos. Ao examinar o cérebro das cobaias, Salehi notou que os neurônios responderam muito bem à substância.

Ainda bebês
Para o médico, que investiga a síndrome de Down(1) há uma década, a pesquisa é um indicativo de que medicamentos administrados em bebês com o problema podem ajudá-los a reverter as deficiências antes que o locus coeruleus comece a se deteriorar. ;Em meus 10 anos de pesquisa sobre a síndrome, concluí que, quanto mais cedo for feita uma intervenção, melhor poderemos corrigir os deficits relacionados ao aspecto cognitivo;, disse, em entrevista ao Correio.

Ele lembra, porém, que os testes foram feitos em laboratório, e que ainda será necessário pesquisar se as mesmas drogas podem ter um efeito benéfico em humanos. O pesquisador alerta que esses testes ainda vão demorar. ;Como os principais objetos da pesquisa serão bebês, precisaremos de um longo tempo e muito mais cuidado para testar as drogas;, diz.

Salehi conta que o próximo passo de seu estudo é entender por que o locus coeruleus degenera na síndrome de Down. Para o PHD em neurologia Frances Wiseman, da University College London, embora a aplicação das descobertas em humanos ainda esteja longe de ocorrer, a pesquisa traz uma nova luz sobre a síndrome, à medida que relatou, pela primeira vez, a relação do problema com o locus coeruleus. ;O resultado indica uma nova área cerebral que os cientistas podem se dedicar a estudar mais para entender melhor a síndrome de Down;, disse ao Correio (leia entrevista).


Problema genético
A síndrome de Down é problema genético, mas não hereditário, decorrente da multiplicação do cromossomo 21. Em vez de um par, a pessoa possui três. Em decorrência da anomalia gênica, o portador tem uma série de sintomas, como deficit cognitivo, inclinação da fenda das pálpebras, tônus muscular diminuído, dificuldades na fala e pele na nuca em excesso, entre outros. Pesquisas já comprovaram que mulheres a partir de 35 anos têm mais chances de gerar filhos com a síndrome.


Experimento com medicamentos em ratos sinaliza que problema pode ser revertido em bebês





  • ENTREVISTA FRANCES WISEMAN

Promissora, mas ainda recente

Pesquisador do Instituto de Neurologia da University College London, o médico Frances Wiseman foi convidado pela revista Science para comentar os resultados da pesquisa que sugere um novo tratamento para a síndrome de Down. Em entrevista ao Correio, ele diz que é cedo para afirmar que o estudo se reverterá em novas drogas, mas destaca a importância da pesquisa para a melhor compreensão da síndrome.

Existem atualmente outros estudos tão promissores quanto o desenvolvido pelo pesquisador Ahmad Salehi?
Há várias drogas, como as usadas no estudo do doutor Salehi, sendo estudadas para melhorar a cognição em modelos de laboratório. Essas drogas, como pentileneterazol e mematina, agem nos canais de íons do cérebro e modificam a transmissão dos sinais elétricos entre os neurônios. Os efeitos no tratamento em pessoas portadoras da síndrome de Down, contudo, ainda não foram reportados. Também existe outra droga, a donepezil, que tem sido administrada para os portadores, mas em testes de pequeno porte. Em alguns desses testes, não houve melhora no processo de aprendizagem ou memória. Outros estudos demonstraram pequenos progressos, principalmente quanto às habilidades de linguagem.

A pesquisa do doutor Salehi pode realmente oferecer esperança aos portadores da síndrome ou ainda é muito cedo para se dizer isso?
O estudo demonstrou um progresso na memória de modelos de rato com síndrome de Down ; embora seja muito excitante, é importante lembrar que ainda serão necessários ensaios clínicos para testar a segurança e a eficácia das drogas antes de tirar a pesquisa do papel. Além disso, a síndrome de Down é uma condição genética muito complicada e dificilmente apenas uma droga possa reverter completamente todos os problemas de aprendizagem e memória decorrentes dela. Cada nova descoberta oferece novas oportunidades para ajudar pessoas com a síndrome, mas não há garantia de que as drogas propostas no estudo realmente melhorarão esses processos.

Qual aspecto da pesquisa o senhor achou mais interessante para a ciência?
A coisa mais importante a respeito das descobertas do doutor Salehi é que a pesquisa examinou uma parte do cérebro, o locus coeruleus, que ainda não havia sido completamente estudado na síndrome de Down. O resultado desse grupo de estudo não apenas sugere uma nova abordagem terapêutica, mas indica uma nova área cerebral que os cientistas podem estudar mais para entender melhor a síndrome de Down.

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