postado em 20/11/2009 09:58
As crianças brincam despreocupadas pela sala de espera, enquanto a dona de casa Maria Helena Lopes de Lima, 32 anos, respira aliviada ao ver a tranquilidade dos filhos. Nos últimos 14 anos, a sala de espera do Hospital de Apoio é sua segunda casa. Praticamente todas as semanas ela percorre o caminho de 28km que separa Samambaia Norte, onde mora, do hospital onde dois de seus seis filhos fazem o acompanhamento da anemia falciforme - doença que não tem cura e atinge cerca de 2 mil pessoas só no Distrito Federal.
Depois de dois filhos saudáveis, o teste do pezinho feito no terceiro, Felipe Lopes, hoje com 14 anos, acusou que ele era portador da doença. O mal tem origem genética e se manifesta em cerca de 1% de todos os bebês que nascem no Brasil. Dois anos depois, a quarta gravidez, e outro diagnóstico positivo. Sthefane Lopes, atualmente com 12 anos, também tem a doença. "Depois dela, eu ainda tive mais dois, mas graças a Deus eles nasceram sem a doença", conta Maria Helena.
O marido, desempregado, não pode acompanhá-la, pois fica em Samambaia, fazendo pequenos trabalhos para ajudar a complementar o benefício que os dois filhos recebem do INSS. Quando Felipe e Sthefane nasceram, Maria teve que deixar o emprego de garçonete para se dedicar integralmente aos filhos. "Eles ficavam mais no hospital do que em casa. Se já é difícil cuidar de uma criança doente, imagina quando são dois, como é o meu caso", conta a mãe "Difícil mesmo é quando eles têm as crises de dor. Se pudesse, sentiria a dor no lugar deles", completa. A dor a que ela se refere são as crises de vasoclusão comuns à pacientes com a doença (leia arte).
Histórias como a de Maria Helena são comuns. Uma pesquisa do chefe do Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília, Cristiano Guedes, mostra que mães de crianças com anemia falciforme têm um papel importante no sucesso do tratamento, mas, por terem que se dedicar totalmente aos filhos, acabam desamparadas pelo Estado. "São essas mães que viabilizam todo o tratamento, cuidam para que os filhos tenham o melhor atendimento possível. O problema é que, na maioria dos casos, elas não recebem nenhuma ajuda psicológica ou econômica dos governos", conta o pesquisador.
Primeira crise
A doença permanece silenciosa nos primeiros meses de vida da criança. É por volta dos seis meses que as primeiras crises acontecem. No entanto, o tratamento deve começar antes que os sintomas apareçam. É aí que as mães têm que superar o primeiro obstáculo: o descaso. "Muitas vezes, elas têm que convencer a família de que a criança precisa de tratamento. Antes que a primeira crise aconteça, é comum elas terem que lidar com pessoas que negam que a criança realmente tenha o problema", explica Cristiano Guedes. Segundo ele, comentários como "é pura frescura" e "você mima demais esse menino" são comuns.
Por razões genéticas, a anemia falciforme atinge principalmente a população negra. "O fato de eles serem em sua maioria de origem negra dificulta ainda mais o tratamento, já que grande parte dessa população tem condições socioeconômicas mais baixas. "Elas lidam diariamente com estigmas por serem mulheres, negras, pobres e morarem na periferia", completa Guedes.
Apesar de terem direito a alguns benefícios, como a gratuidade no transporte público e ajuda financeira do sistema previdenciário, nem sempre esses direitos são respeitados. "Desde o cobrador de ônibus, que desconfia que elas estão fraudando o passe livre, até os peritos da Previdência Social, que dificultam a concessão de benefícios, essas mulheres têm que ficar provando o tempo todo que seus filhos sofrem de uma doença séria e que têm direitos que devem ser respeitados", conclui o pesquisador.
Negligenciada
No Distrito Federal, o tratamento de todos os pacientes com anemia falciforme é feito no setor de hematologia do Hospital de Apoio, próximo ao Setor Militar Urbano. Segundo o coordenador de Hematologia da Secretaria de Saúde do DF, Alexandre Caio, o desconhecimento da população a respeito da doença está ligado à pouca importância que historicamente foi dada ao problema. "É uma doença que existe desde dos tempos da escravidão, mas que durante séculos foi negligenciada, exatamente por estar associada às populações negras e pobres", explica.
Segundo ele, os esforços estão concentrados em melhorar a qualidade de vida dos pacientes e diminuir a mortalidade. "Antes, menos da metade das crianças que nasciam com anemia falciforme chegavam aos 18 anos. Hoje, muitos indivíduos têm uma expectativa de vida semelhante à de uma pessoa saudável", conta. Ele associa a grande ocorrência da doença no Distrito Federal à formação geográfica da população brasiliense. "Aqui, temos pessoas vindas dos quatro cantos do país. Assim, é mais do que esperado que, do ponto de vista genético, essas pessoas também tragam uma grande diversidade", completa Alexandre.
Para saber mais
Teste do pezinho
A principal forma de se detectar a presença da doença logo após o nascimento é através do teste do pezinho, que deve estar disponível em toda a rede pública de saúde de todo o país. Nele, é possível saber se a criança tem o traço falciforme, que não necessariamente indica que a criança tenha a doença. "Se a criança tiver o traço, ela tem 25% de chance de ter a doença, mas, caso isso não aconteça, ela leva uma vida completamente normal", explica a médica hematologista, diretora do Hemocentro do Rio de Janeiro (HemoRio) e membro da Sociedade Brasileira de Hematologia e Hemoterapia, Clarisse Lobo.
O Ministério da Saúde mantém o Programa Nacional de Triagem Neonatal, que é responsável por manter uma base de dados únicas sobre a ocorrência de anemia falciforme a das outras três principais doenças detectadas pelo teste do pezinho: enilcetonúria, hipotireoidismo congênito e fibrose cística. O DF, apesar de ser um dos pioneiros do país no exame, não faz parte do programa nacional. Segundo o coordenador de Hematologia da Secretaria de Saúde do DF, Alexandre Caio, isso ocorre "porque a secretaria não possui recursos humanos suficientes para digitalizar os resultados desses exames".