Ciência e Saúde

Raras e negligenciadas

Doenças que, isoladamente, afetam muito poucos pacientes chegam a acometer até 8% da população mundial. Mesmo assim, são pouco estudadas e sofrem com o desinteresse de governos e da indústria farmacêutica

Paloma Oliveto
postado em 26/11/2009 07:00
Doenças que, isoladamente, afetam muito poucos pacientes chegam a acometer até 8% da população mundial. Mesmo assim, são pouco estudadas e sofrem com o desinteresse de governos e da indústria farmacêuticaA denominação é ;doenças raras;. Levam esse nome porque cada uma delas afeta parcelas muito pequenas da população, diferentemente de outras patologias, como o câncer, por exemplo. Juntas, porém, afetam entre 6 e 8% de todos os habitantes do mundo ; o que, no Brasil, significa pelo menos 10,8 milhões de pessoas. Um número equivalente a quase cinco vezes a população do Distrito Federal. Pouco estudados, subnotificados e mal diagnosticados, esses males preocupam geneticistas e familiares de pacientes, que se reuniram nesta semana no I Congresso Brasileiro de Doenças Raras.

No evento, organizado pela Fundação Geiser (Grupo de Enlace, Investigação e Suporte para Doenças Raras, sigla em espanhol), uma organização não governamental formada em 2001 por profissionais de saúde, doentes e familiares, foram debatidos temas como a visibilidade das enfermidades e o suporte aos pacientes. Os participantes querem brigar para que a Portaria n; 81/09 do Ministério da Saúde, que inclui a genética no Sistema Único de Saúde, saia do papel, quase um ano depois de publicada.

Regina e Eduardo, ao lado do marido e do filho Leonardo: tratamento de R$ 40 mil mensaisSe, para as pessoas em geral, nomes como doença de Gaucher, síndrome de Aarskog-Scott, yersiniose, entre tantas outras, nada significam, para as vítimas são sinônimos de uma vida marcada por privações, peregrinações por consultórios, diagnósticos errados e batalhas ; muitas vezes perdidas ; pela sobrevivência. Predominantemente genéticos, os males considerados raros são, na maioria, incapacitantes, atacam diversos órgãos e provocam estragos progressivos no organismo, como surdez, cegueira, insuficiência cardíaca e paralisia, entre outros.

Os desafios listados por geneticistas e familiares no congresso são enormes. Começam com a formação dos médicos, que muitas vezes passam os cinco anos básicos de faculdade sem nem ouvir falar das doenças. Passa pela falta de interesse da indústria farmacêutica em produzir medicamentos que, em tese, seriam consumidos por poucas pessoas, e culmina na falta de políticas públicas eficazes que garantam o fomento à pesquisa, a prevenção e o tratamento. Embora incuráveis, as doenças raras podem ter os sintomas amenizados mas, geralmente, são remédios caros e nenhum deles faz parte da lista de medicamentos excepcionais do SUS.

Impotência
Doenças que, isoladamente, afetam muito poucos pacientes chegam a acometer até 8% da população mundial. Mesmo assim, são pouco estudadas e sofrem com o desinteresse de governos e da indústria farmacêutica;O médico se sente muitas vezes impotente em relação às doenças raras e temos de caminhar para a modificação drástica desse cenário. Isso passa pela educação médica;, afirma o pediatra geneticista Salmo Raskin, da Sociedade Brasileira de Genética Médica. ;Um dos maiores desafios para nós, médicos, é a fragilidade do ensino de medicina. Muitas vezes, as doenças raras não são nem citadas nos cursos;, diz. A geneticista Cecília Micheletti, da Fundação Geiser, defende que informações sobre esses males sejam repassadas aos profissionais não apenas durante a faculdade. ;Deveria constar nos currículos de pós-graduação e nos dos cursos de reciclagem;, diz.

Sem o diagnóstico nas mãos, familiares correm de um lado para o outro na esperança de descobrir o que os pacientes têm, gastando dinheiro e, o mais precioso para os portadores de doenças, tempo. Regina Próspero, presidente da Associação Paulista de Mucopolissacaridose, tem uma história semelhante à de outras mães e pais que chegam a perder seus filhos sem saber o motivo. Depois de lutar durante seis anos para ter um diagnóstico do primogênito, Nilton, ela só conseguiu obter a informação seis meses antes de a criança morrer: era a mucopolissacaridose (doença metabólica hereditária causada por erros inatos do metabolismo, que determinam a diminuição da atividade de determinadas enzimas). O segundo filho ; quando descobriu a doença de Nilton, estava grávida de Eduardo ; também nasceu com a doença, mas demorou dois anos e meio para os sintomas começarem a aparecer.

Regina conta que um médico chegou a sugerir que ela abortasse. ;Falei que não ia fazer isso de jeito nenhum.; Sempre com pneumonia e problemas cardíacos, Eduardo quase morreu. Quando tinha 13 anos, o organismo do menino estava tão comprometido que a mãe acredita que ele não iria resistir. Foi quando Eduardo, hoje com 19, começou a participar de uma pesquisa clínica e a receber infusões semanais de uma enzima que combate os efeitos da doença metabólica. ;Ele estava surdo, quase cego, tinha hipertensão pulmonar e comprometimento cardíaco;, relata Regina. Com o medicamento, o jovem preservou o que restava da visão, recuperou a audição e não teve mais problemas pulmonares nem vasculares.

O problema é que o custo disso são R$ 40 mil mensais, algo impensável mesmo para a classe média-alta. ;Nossa briga hoje é para que as crianças recebam, o quanto antes, o medicamento. Alguns danos da doença não têm reversão, mas poderiam ser menos comprometedores. Outros podiam ser evitados;, diz a presidente da APMPS. Como o tratamento não é coberto pelo SUS, as vítimas precisam acionar a Justiça ; é o que tem permitido a Eduardo ser tratado. Um dos pacientes assistidos pela associação morreu sem a decisão judicial. Ela chegou depois do óbito ; o juiz indeferiu o pedido por achar que o tratamento era desnecessário.

Sem chances
Quando conseguem o tratamento pela via da Justiça, os pacientes sofrem com outro problema: a falha na reposição dos medicamentos. ;O governo compra o remédio para seis meses. Depois que acaba, temos que entrar na Justiça de novo e, nesse meio tempo, a pessoa fica sem tratamento. Tem um paciente que está internado porque, há dois meses, não recebe medicação;, conta Regina. Por ver a luta dos familiares, Eduardo superou as dificuldades inerentes à doença e hoje está no segundo ano da faculdade de direito. Segundo a mãe, ele quer ajudar pessoas que, como ele, dependem da assinatura de um juiz para sobreviver.

Presidente da Fundação Geiser, a médica Virgínia Llera lembra que, sem incentivos, dificilmente a indústria vai buscar novos produtos para portadores de doenças raras. Ela conta que, em países como os Estados Unidos, o Japão, a Austrália e na União Europeia, legislações específicas conseguiram fazer com que as pesquisas sobre medicamentos aumentassem substancialmente. A médica também defende a prevenção, por meio de aconselhamento genético. ;Como a maior parte das doenças raras tem origem genética e hereditária, quando você acha um membro da família que é portador, isso pode gerar um projeto familiar de não repetição do problema. Além disso, é possível prevenir as complicações. Quanto mais cedo forem feitas intervenções, mais cedo elas são evitadas;, diz.

Alegando problemas de agenda, o Ministério da Saúde não enviou representantes ao congresso. Comprometeu-se, contudo, a receber propostas feitas pelos médicos, pacientes e seus familiares sobre um plano nacional sobre doenças raras. ;Pelo menos temos uma porta aberta;, diz Virgínia Llera.

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