Jornal Correio Braziliense

Ciência e Saúde

Euryclides Zerbini, o gigante

;Operar é divertido, é uma arte, é ciência e faz bem aos outros.; A frase, de Euryclides de Jesus Zerbini, reflete com precisão como um dos mais importantes cirurgiões cardiovasculares do Brasil encarava o próprio ofício. Perfeccionista e incansável, o médico responsável pelo desenvolvimento da cirurgia cardíaca no país enfrentou dificuldades estruturais, ideológicas e éticas ao longo da carreira, mas jamais esmoreceu. Em quase seis décadas de atuação, liderou a equipe pioneira do transplante cardíaco na América Latina, fundou o Instituto do Coração (InCor/ Universidade de São Paulo), acumulou, com seu time de assistentes, mais de 40 mil cirurgias, e conquistou títulos cobiçados em sua área de atuação. Embora tivesse motivos para ser vaidoso, Zerbini é lembrado pelos companheiros de profissão pela humildade, aliada, sem dúvida alguma, à extrema competência.

Nascido em Guaratinguetá, interior de São Paulo, em 7 de maio de 1912, chegou a ser considerado um caipira tímido, sem qualquer aptidão para prática médica, quando ingressou na universidade. Filho caçula de Eugênio Zerbini, imigrante italiano que sempre valorizou a disciplina e os estudos, o cirurgião, de fato, terminou o colegial sem se dar conta da vocação. Na verdade, sua história com a medicina começa com o incentivo do pai, mas ganha contornos próprios desde cedo. Incerto do caminho a seguir, pensou em desistir ao assistir a primeira cirurgia na faculdade, no início dos anos 1930 ; o sangue o assustava. O receio foi superado no front de batalha da Revolução Constitucionalista (1932), na qual se apresentou como soldado e acompanhou o atendimento de feridos. Foi aí que se apaixonou pela cirurgia. Desde então, a medicina foi vivenciada intensamente.

Um ano depois de se formar pela Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, Zerbini é nomeado professor da USP, com apenas 24 anos. O primeiro grande feito profissional ocorre em 1942, quando atende uma criança que entra no pronto-socorro com um estilhaço de ferro no peito. Ágil, o médico não hesita e abre o coração do menino para religar a artéria coronária e salvar-lhe a vida. O fato o estimula a seguir para os Estados Unidos, onde estuda cirurgia torácica. Empolgado, volta ao Brasil e organiza uma equipe de especialistas em cirurgia cardíaca. Os companheiros de profissão que atuaram com Zerbini são unânimes: o cirurgião é o protagonista de uma página inesquecível da medicina brasileira.

Época heroica
Alguns discípulos do professor continuam no InCor, e se emocionam ao recordar as realizações da equipe em uma época na qual uma intervenção cardíaca era rara. O coração ainda era um grande mistério. ;O legado de Zerbine é inestimável. Mesmo os profissionais que não tiveram a sorte de atuar ao seu lado, se consideram discípulos. Ele estimulava os assistentes, vibrava com nossa produção científica e impulsionava as conquistas de todos. Como pouquíssimos mestres e colegas, estava sempre aberto a ouvir, a ensinar, a compartilhar saber. Fazia isso com maestria;, lembra o cirurgião cardíaco, atual presidente do Conselho Diretor do InCor e professor titular de cirurgia torácica cardiovascular da Faculdade de Medicina da USP, Noedir Stolf, médico assistente de Zerbini de 1968 até a aposentadoria.

Foi em 1968, pelas mãos perfeccionistas e corajosas do discreto e espontâneo paulista de Guaratinguetá, que a cirurgia cardíaca brasileira marcou o nome na história e conquistou destaque no cenário mundial. Em 25 de maio, Zerbini e sua equipe fizeram bater no peito do jovem João Ferreira da Cunha o coração de Luís Ferreira de Barros, vítima de um acidente automobilístico. As condições eram difíceis. Não se tinha o conceito de morte cerebral. ;O professor reuniu uma equipe com profissionais de diversas áreas. Ele era extremamente criterioso e cuidadoso. Foi um passo ousado e a notícia correu o mundo, porque o primeiro transplante em humanos havia sido feito apenas cinco meses antes, na África do Sul. Sabíamos da nossa capacidade, nos preparamos para o desafio, mas nem por isso ficamos longe de críticas, inclusive dos que julgavam que não poderíamos ser vanguarda, já que no Brasil ainda se morria de verminoses;, relata Stolf.

O procedimento era algo planejado por Zerbini há algum tempo, mas a transplantação era considerada uma intervenção experimental por muitos profissionais que dirigiam o departamento de medicina da USP na época. O médico encontrou resistências, e o cirurgião sul-africano Christian Barnard acabou realizando o primeiro transplante cardíaco antes. ;Zerbini sabia que era possível, estava sempre aberto a novas possibilidades, mas era uma pessoa metódica, todas as suas decisões eram muito planejadas. Ele analisava os prós e contras milimetricamente. Passamos anos fazendo o procedimento em cães e em cadáveres, com um planejamento detalhadíssimo conduzido por ele;, revela o amigo e discípulo.

Plantando
Os dois pacientes transplantados viveram 18 dias. Ainda na década de 1960, mais dois transplantes foram feitos pela equipe de Zerbini. Nos anos 1970 e 1980, devido aos inúmeros problemas que ainda precisavam ser vencidos, poucos procedimentos puderam ser realizados. Apenas quatro centros em todo o mundo continuaram o trabalho, e acabaram se tornando referência, pois estabeleceram métodos de diagnósticos e protocolos, além de desenvolverem drogas contra rejeição. O esforço dos médicos, contudo, rendeu muitos frutos. ;O primeiro transplante impulsionou e foi fundamental para a construção do Instituto do Coração. O governador Abreu Sodré não teria assinado o ato de criação e alocado recursos para a construção caso ele não tivesse ocorrido;, garante Stolf.

O colega acrescenta que, poucos anos antes do transplante, quando a cirurgia cardíaca nascia, médicos de todas as partes do mundo compravam equipamentos cirúrgicos dos norte-americanos. Zerbini montou uma oficina no porão do HC para fabricar os instrumentos de trabalho, que eram vendidos a preços baixos para incentivar a realização de intervenções cardíacas em toda América Latina. ;A dedicação germinou. Nosso professor deixou uma equipe que deu seguimento ao que ele começou;, explica o médico.

O amor pela medicina e a entrega ao trabalho não impediram Zerbini de ter uma relação próxima e amistosa com os três filhos. Embora trabalhasse mais de 15 horas por dia, foi um pai atencioso. Ricardo Zerbini, o caçula do médico, conta que ele saía muito cedo e chegava tarde em casa. ;Depois da jornada no Instituto do Coração, na clínica particular e na Faculdade de Medicina, ainda estudava e organizava simpósios e apresentações, pois dava palestras em todo o país. Nunca tirou férias, era incansável. Mas, a dedicação ao que ele acreditava e amava foi um exemplo para todos nós. Temos um orgulho imenso;, diz Ricardo.

O filho do médico lembra também que o cirurgião jamais se considerou um homem brilhante, e sim um trabalhador, um operário da medicina. ;Ele sempre falou que o trabalho superava tudo. Guardo lembranças doces do meu pai, de quem jamais levei um pito. Em casa, quem mandava era a minha mãe. Ele não conseguia nos socorrer quando fazíamos travessuras e nos machucávamos. Dizia que não podia ver sangue;, recorda.

O papel de Dirce
Dirce Zerbini, a esposa do cirurgião também era médica e trabalhava na equipe do marido. Ex-aluna do médico, ela também se debruçou em pesquisas e desenvolveu máquinas na oficina criada pelo marido no porão do Hospital das Clínicas. Um golpe do destino a abalou profundamente e fez com que Zerbini se entregasse ainda mais ao ofício. O filho do meio do casal sofreu um acidente automobilístico e morreu seis dias depois de se formar em medicina, no fim da década de 1970.

Com o desenvolvimento de drogas que evitavam a rejeição de órgãos transplantados, os procedimentos foram retomados no decorrer dos anos 1980. Zerbini ainda realizou o primeiro transplante de coração em um paciente portador de mal de Chagas. Mesmo aposentado como professor, continuou trabalhando até um mês antes de sua morte. Vítima de um melanoma metastático, ele morreu aos 81 anos. O médico, porém, jamais será esquecido. ;Zerbini é um gigante da medicina. O Instituto do Coração é a prova concreta de uma filosofia que ele carregava: quando nos entregamos ao que acreditamos, conseguimos realizar, mesmo diante das mais difíceis circunstâncias;, conclui Noedir Stolf, presidente do conselho diretor do InCor, semente plantada por Zerbini.