postado em 29/12/2009 07:00
No início, era como uma sentença de morte. A certeza de que só restariam semanas, no máximo meses, de vida. Durante muito tempo, foi essa a situação enfrentada pelos pacientes com HIV, vírus causador da Aids. Mas, com os avanços no tratamento da doença e no desenvolvimento de novos medicamentos que controlam a sua evolução, os soropositivos descobriram que o diagnóstico do vírus não é mais sinônimo de morte, e que é, sim, possível conviver com a doença e levar uma vida feliz.
Quem vê o rosto sempre sorridente de Andréa*, 40 anos, não imagina a história de vida que ela carrega. Em 1998, foi diagnosticada como portadora do HIV. No entanto, como, na época, a doença ainda não era totalmente conhecida pelos médicos, ela não foi avisada que carregava o vírus, o que só aconteceu um ano depois. "Como eu não tinha nenhuma manifestação, não acharam que era preciso me avisar. Só no ano seguinte, quando os sintomas da Aids apareceram e eu tive minha primeira crise, foi que meu médico me contou que eu tinha a doença", relembra.
Se o choque inicial é sempre impactante, quando essa nova realidade é acompanhada de uma série de problemas de saúde, a situação de complica ainda mais. "Eu tive todos os sintomas, fiquei semanas no hospital, cheguei a pensar que não sairia dali, mas eu tinha força de vontade, e nunca pensei em desistir", conta Andréa. Meses depois de sair do hospital, outro acontecimento mudou a sua vida. Num acidente de carro em dezembro de 1999, ela perdeu o companheiro e a única filha. "Se não fosse pela ajuda da minha família, eu não sei se teria conseguido suportar, mas sempre tive muita força de vontade, que me fez seguir em frente", conta.
Preconceito
Foi então que Andréa descobriu um dos lados mais difíceis da doença: o preconceito e a desinformação. "Quando chegamos ao hospital, depois do acidente, os socorristas não estavam de luvas, aí, logo que eles descobriram que eu sou portadora do vírus, falaram coisas absurdas, me chamaram de aidética e disseram que eu ia transmitir a doença para eles", relembra.
Em 2003, teve outra recaída e, mais uma vez, chegou a passar semanas no hospital. Por causa da doença, não pode trabalhar, e as dívidas se acumularam. "Eu cheguei a ter a minha prisão decretada por falta de pagamento de uma dívida, por isso, mesmo muito mal, eu não podia me internar, pois seria presa imediatamente. Chegava a perder 3kg em uma só noite", relembra. Em 2007, veio a terceira e mais forte crise. Andréa chegou a ter um derrame cerebral. "Quando foram me operar, os médicos me falaram claramente que eu não sobreviveria. Mais uma vez, eu tive fé que ia conseguir, que ia superar mais essa, e foi isso que aconteceu."
Apesar do inesperado sucesso da cirurgia, ela ficou com uma sequela. Durante quase um ano, permaneceu sem a visão dos dois olhos, que aos poucos, foi recuperada. "Eu tenho uma filosofia de vida que diz que qualquer situação ruim pode ser administrada. Assim, eu me agarrava a Deus e sabia que tudo daria certo no final", conta ela. "Eu raramente choro, tento sorrir o tempo todo, porque eu acredito que o sorriso cura. Foi sorrindo que eu passei por tudo isso e é sorrindo que eu me mantenho viva", completa.
Há 10 anos, na época em que Andréa descobriu que tinha Aids, a informação sobre a doença ainda era pouca. O HIV ainda matava muito, e ainda existiam diversas dúvidas sobre como conviver com o vírus. Para ajudar quem passava por essa fase de aprendizado, surgiu a revista Saber Viver, editada por Sílvia Chalub e distribuída para pacientes de todo o país. "No início, as pessoas tinham muitas dúvidas sobre alimentação e cuidados com o corpo, e a revista veio para ajudar a resolver esse problema", conta.
Com o tempo, Silvia descobriu outro problema que os portadores do vírus da Aids enfrentavam: a solidão. "Essas pessoas têm uma expectativa de vida cada vez mais alta, e muitos reclamavam que sentiam falta de amigos ou de relacionamentos. Foi aí que resolvemos criar uma sessão dedicada a isso, para que as pessoas pudessem se conhecer e trocar experiências", conta, enquanto comemora o 10º aniversário da publicação, que é gratuita.
Nova fase
Para Ana Paula Prado, assessora técnica do Departamento de DST-AIDS do Ministério da Saúde, a melhoria da saúde desses pacientes resultou em uma nova fase, ainda mais difícil. "Há 13 anos, o Brasil universalizou o acesso aos medicamentos para a doença. Com isso, a expectativa de vida desse grupo cresceu muito, gerando um novo desafio, o de fazer com que essas pessoas tenham qualidade de vida", conta.
Entre os obstáculos a serem enfrentados, Ana Paula Prado aponta o preconceito como o maior e mais difícil. "É uma questão de direitos humanos. A Aids sempre foi uma doença muito estigmatizada e, embora tenha diminuído um pouco nos últimos anos, o preconceito ainda persiste, só que de maneira mais sutil", conta. "Se antes as pessoas nem chegavam perto, hoje elas já convivem no mesmo ambiente, abraçam e até compartilham copos e talheres. Porém, o preconceito na hora de beijar, por exemplo, ainda permanece forte" completa.
Gilson* , 46 anos, faz parte da geração que presenciou as mudanças no tratamento e na qualidade de vida dos pacientes soropositivos. Diagnosticado há 14 anos, ele se lembra das dificuldades do tratamento no início, e comemora os avanços. "Quando eu comecei o tratamento, só havia o AZT, por isso eu tomava um coquetel com quase 30 comprimidos. Hoje, consigo controlar a doença só com seis", comemora. "Não tem como negar que, nesse tempo, o tratamento para nós melhorou muito", completa.
Ele e a mulher têm o vírus. As duas filhas do casal, que nasceram depois de eles contraírem a doença, são saudáveis. Para ele, enfrentar a doença é o mais fácil. Complicado mesmo é transpor as barreiras impostas pela sociedade. "Desde que fui diagnosticado, não trabalhei em emprego fixo mais; mesmo com tanta luta, as pessoas ainda têm preconceito. O mercado de trabalho ainda está fechado para nós", conta.
Para tentar reverter essa situação, foi criada a Associação Brasiliense de Combate à Aids, conhecida como Grupo Arco-Íris. A organização não governamental desenvolve um trabalho de capacitação para o mercado de trabalho para quem tem a doença. "O HIV não é mais associado à morte por isso, as pessoas querem cada vez mais trabalhar, tocar suas vidas, viver de maneira normal", conta a presidenta do grupo e assistente social Adilce da Conceição Silva Lima.
Ela acredita que qualidade de vida não é apenas saúde. "Nós achamos que, para ter uma vida saudável, além do acesso aos serviços de saúde, também são importantes outros aspectos, como a socialização, o conhecimento e o apoio da família", completa Adilce, que também aponta o preconceito como a maior barreira a ser vencida. "As pessoas precisam entender que quem tem Ais não é uma ameaça para ninguém. Se não fosse assim, eu, que convivo com soropositivos há 15 anos, já teria me infectado", completa.
» Os nomes são fictícios a pedido dos entrevistados