Ciência e Saúde

Para sociólogo norte-americano, o mundo moderno criou temores, como o pânico de voar

Especialistas brasileiros afirmam que o sentimento é normal, mas, em excesso, pode evoluir para transtornos e fobias

postado em 17/01/2010 10:45
Em outubro de 1996, o cirurgião plástico Múcio Porto, 47 anos, escapou de um dos maiores desastres aéreos brasileiros, o acidente com o Fokker 100 da TAM, que caiu no Bairro de Jaboaquara, em São Paulo, depois de decolar do Aeroporto de Congonhas. Noventa e seis pessoas morreram. Um sonho que o cunhado havia tido no Natal de 1995 fez com que ele desistisse de entrar no avião. ;Precisava ir ao Rio de Janeiro com urgência e só tinha o voo da TAM disponível. Me lembrei do meu cunhado e voltei para casa;, relata.Manaíra entrou em desespero por causa da epidemia do vírus H1N1

O fato deixou profundas marcas no cirurgião, e uma delas é o medo de voar. Porém, para o sociólogo norte-americano Barry Glassner, autor do livro A cultura do medo, lançado recentemente no Brasil, a maioria dos medos atuais é sem motivo. Glassner afirma que, apesar de eventuais falhas catastróficas, o transporte aéreo ainda é menos arriscado do que viajar de carro. ;É nossa percepção do perigo que tem mudado, e não o nível real de risco;, afirma o sociólogo, no livro.

O medo é um dos sentimentos mais primitivos do ser humano e essencial para a nossa sobrevivência. ;Ele nada mais é do que uma reação obtida a partir do contato com algum estímulo físico ou mental ; interpretação, imaginação, crença ;, que gera uma resposta de alerta no organismo;, define o psiquiatra Rafael Boechat, professor da Universidade de Brasília (UnB).

Toda vez que o cirurgião plástico Múcio Porto precisa viajar, é um sofrimento. Depois de escapar de um acidente, ele ficou com medo de voarNo caso do cirurgião plástico, o medo de voar pode ter sido desencadeado pela interpretação do sonho. Depois do trauma do acidente, ele sofre só de pensar em entrar em um avião. ;O medo que nos traz angústia está ligado aos nossos sentimentos primitivos e relacionado com as sensações de finitude ; ou medo de morrer ;, baseados nas vivências reais ou nas fantasias;, explica José Toufic Thomé, coordenador do Departamento de Intervenção em Desastres e Catástrofes da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).

Paranoia

A estudante Manaíra Lacerda, 21 anos, é outra que vira e mexe se vê frente à frente com seus medos. No início da pandemia da gripe H1N1, a jovem diz que ficou paranoica com a ideia de pegar a doença. ;Tenho medo de várias doenças, mas com a gripe suína tudo cresceu ainda mais. Era gente morrendo o tempo todo. Achava que aquilo poderia acontecer comigo;, relata.

O medo piorou quando a irmã dela ficou gripada. Manaíra conta que praticamente obrigava toda a família a lavar as mãos e passar álcool gel o tempo inteiro. ;Quando tinha que entrar no quarto dela, prendia a respiração.; O resultado disso tudo foi um período tenso, que lhe causou ansiedade. Além de doenças, a moça também tem medo de viajar de avião. ;Quando entro em um avião, começo a imaginar aquelas tragédias que vi em filmes ou no noticiário. É terrível;, conta.

O psicólogo clínico Pedro Moreira acredita, assim como Barry Glassner, que medos imaginários podem ser desencadeados tanto por agentes estressores, como alguma experiência traumática, quanto pela forma como uma informação é absorvida pelo indivíduo. ;A maneira como a gripe suína foi difundida não foi saudável. Incitou o pânico em algumas pessoas;, observa. Ele também cita o caso do maníaco do parque, como ficou conhecido Francisco de Assis Pereira, criminoso que, há 12 anos, matou seis mulheres no Parque do Estado, em São Paulo. ;As pessoas deixavam de sair de casa com medo de serem atacadas. Ele deixou de ser um portador de uma doença e se tornou o mal personificado.;

Racionalidade

Segundo os especialistas, o estado de medo coletivo pode aumentar os transtornos de estresse. Um exemplo disso foi o surto de febre amarela ocorrido no fim de 2007, quando um homem morreu por ter tomado a vacina contra a doença duas vezes. ;O medo não pode transcender o limite da racionalidade;, afirma Pedro Moreira. ;Ele ajuda na prevenção, mas a que custo?;, indaga.

No caso de Múcio Porto, a prevenção é feita por meio do estudo das rotas que o avião vai fazer. Ele também desenvolveu algumas estratégias pessoais, como nunca viajar à noite nem no fim do dia, quando podem ocorrer tempestades, além de verificar a previsão de tempo em todo o itinerário que o avião fará. ;Acredito que assim posso, quem sabe, adiar a minha morte, não é?;, justifica.

Assim como Moreira e Glassner, Rafael Boechat acredita que o excesso de informação com conteúdo ameaçador pode provocar o medo sem um motivo real. ;O excesso de exposição influencia no comportamento e acaba aumentando o nível de estresse, o que dificulta os mecanismos fisiológicos, como o sistema imunológico. Por isso, as pessoas adoecem;, argumenta o psiquiatra.

Para ele, as políticas do pessimismo e do sensacionalismo não fazem sentido. ;As pessoas devem se atentar à realidade. Arrisco dizer que a ignorância é um anestésico; quando não se sabe das coisas, não há sofrimento;, conclui. Talvez essa ignorância poderia ter sido a saída para o estudante de Mato Grosso do Sul Renan Júnior Andrade Souza, 19 anos. Há alguns meses, o jovem começou a ler sobre satanismo na internet e fazer algumas relações do tema com filmes, músicas, artistas e políticos.

Depois disso, para ele, o mundo virou uma conspiração, com direito à Nova Ordem Mundial, planejamento do atentado de 11 de setembro em Nova York pelos Estados Unidos, e adoradores do diabo, como Madonna, Lady Gaga e Rihanna, entre outros. O fato é que Renan ficou tão impressionado com o que leu que teve uma síncope emocional. ;Entrei em depressão. Não queria falar com ninguém, só chorava. Foi horrível.; Hoje, ele está mais tranquilo, porém, continua pesquisando o assunto.

De acordo com o psiquiatra José Thomé, o ser humano está voltado mais para si e, quando se depara com algum agente agressor, como acidentes aéreos e atos violentos, ou mesmo uma crença como a que Renan teve contato, não sabe como lidar com o sentimento de medo e nem perceber o que é real. ;A tendência das pessoas está em diminuir as relações. Quando há relações, há uma rede de interação, e a realidade passada por essa rede é que dá respostas aos sentimentos, inclusive ao medo.;

Sem essa rede, segundo Thomé, acidentes aéreos ou doenças, por exemplo, passam a ameaçar, e as pessoas deixam de viver a vida, além de desencadear, em quem tem predisposição, transtornos de ansiedade, obsessivo-compulsivo, depressivo, de estresse pós-traumático e fobia (veja quadro). ;O ser humano é inseguro por ter medo da morte. Nós negamos isso para poder viver, senão qual o motivo de passar pelos percalços da vida? O medo é natural, seu excesso ou falta é que não são;, diz Thomé.



Transtornos

Veja algumas patologias que podem ser desencadeadas pelo medo:

Transtorno depressivo


Doença que envolve o corpo, o humor e os pensamentos. Afeta a maneira de a pessoa se alimentar e dormir, como ela se sente em relação a si própria e como pensa sobre as coisas. Um transtorno depressivo não é o mesmo que uma tristeza passageira. Sem tratamento, os sintomas podem durar semanas, meses ou anos.

Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC)

Caracterizado pela presença de obsessões ou compulsões que causam um mal-estar intenso, consomem muito tempo (mais de uma hora por dia, pelo menos) e interferem na vida cotidiana da pessoa, em diversos aspectos, como no trabalho, nas atividades sociais e no convívio familiar.

Transtorno de estresse pós-traumático


Desenvolve-se em qualquer período da vida, principalmente em condições nas quais a pessoa é frequentemente exposta a situações de risco. Traz prejuízos importantes aos portadores, levando ao abuso de álcool e à depressão.

Transtorno de pânico

Caracterizado pela presença de ataques de pânico inesperados e repetidos, seguidos por pelo menos um mês de preocupação persistente.

Fobia


É o medo persistente e excessivo de um objeto, uma pessoa, um animal, uma atividade ou uma situação. É um tipo de distúrbio de ansiedade. A pessoa com fobia ou tenta evitar a coisa que ativa o medo, ou suporta isso com grande ansiedade e angústia.

Fontes: Associação Brasileira de Psiquiatria e Associação dos Familiares e Amigos dos Portadores de Transtorno de Ansiedade

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