postado em 24/02/2010 07:00
A maternidade é uma experiência cheia de nuances, que nem sempre contempla somente as cores suaves normalmente escolhidas para o enxoval do bebê. Para algumas mães, o nascimento de um filho, considerado um dos momentos mais sublimes da vida da mulher, pode vir seguido de tons bem sombrios. Isso acontece quando a alegria se transforma em tristeza, a expectativa em medo e a emoção em depressão pós-parto (DPP), transtorno que pode ocorrer com até 20% daquelas que dão à luz. Um trabalho realizado na Universidade Católica de Brasília (UCB) prova que o pré-natal psicológico, preparação emocional feita com auxílio de psicólogos, é tão importante quanto o acompanhamento físico da gestante e da criança. O apoio psicológico em um momento de tantas mudanças externas e internas pode fazer toda diferença para a mãe e para o pequeno ser que acaba de chegar.A psicóloga Alessandra Arrais, professora e coordenadora da experiência realizada na UCB, explica que o assunto ainda é um grande tabu tanto para a mulher quanto para a sociedade em geral, e que a proposta da instituição é desmistificar o tema e prevenir a DPP. Segundo ela, existe a tendência de se fantasiar a realidade, idealizar o momento e esquecer os desafios que a condição de mãe impõe. ;Certamente, carregar dentro do ventre uma nova vida é uma experiência fascinante de amor, continuidade, esperança. A maternidade, contudo, implica tantas alterações em diversos espaços da vida da mulher, sejam eles pessoais, emocionais ou sociais, que pode acarretar mais sofrimento do que a futura mãe, ainda que seja a mais realista delas, ousa supor;, observa.
A depressão pós-parto é um episódio não psicótico que pode se iniciar até os primeiros 12 meses depois do nascimento da criança. Sua manifestação clínica é muito parecida com outros quadros de depressão. A pessoa sente tristeza prolongada, perda de autoestima e motivação para a vida, apatia, indisposição, sensação de incapacidade, culpa e medo. Alessandra pondera que o problema nem sempre é diagnosticado porque algumas manifestações do estado depressivo, como cansaço, insônia e alterações no apetite se misturam com a realidade do pós-parto. No entanto, além de todos os sintomas depressivos comuns, ocorre constrangimento e vergonha, porque a sensação de tristeza é incompatível com o momento.
;É uma situação ambivalente. No inconsciente coletivo, uma nova vida não combina com sentimentos tão negativos. Por isso, a mulher se isola, nem sempre tem coragem de assumir, falar o que está acontecendo com ela. Para muitas pessoas, a depressão pós-parto é uma aberração da natureza, sofrida apenas por mulheres desumanas, sem coração;, lamenta.
Sem exceções
O estudo da UCB acompanhou um universo de cerca de 50 mulheres. ;Ficou muito claro que a DPP as atinge em todas as idades, classes sociais e níveis escolares. Não raro, ela ocorre em mulheres que desejaram e planejaram a criança. O caso mais grave de depressão pós-parto que atendi na vida foi de uma paciente que fez inseminação artificial, enfrentou um processo longo de três anos para engravidar e já tinha perdido três bebês espontaneamente;, afirma. A percepção de sentimentos negativos tão antagônicos ao que se idealizou viver, como plenitude e felicidade provoca nas mães uma sensação de estranhamento e inadequação. ;O sofrimento psíquico é vivido isoladamente, podendo tornar-se crônico, o que causa enorme prejuízo para o relacionamento mãe e filho;, alerta Alessandra.
Quem passa pela situação não hesita em afirmar que a cobrança social deixa a realidade ainda mais delicada e confusa. Foi assim com a operadora de telemarketing Ludmila Moreira Grillo, 27 anos. Ela sonhava em ser mãe. No entanto, quando o primeiro filho nasceu, o riso deu lugar ao choro e à tristeza. Ludmila havia perdido três bebês anteriormente. Quando conseguiu segurar a gestação, o relacionamento com o pai da criança não estava bem e o receio de não conseguir cuidar do filho a devastou. ;Tive vontade de desaparecer. Cheguei a cogitar não segurá-lo em meus braços e não amamentá-lo. Sofri muito. Senti muito remorso, mas consegui superar com apoio psicológico do grupo de estudo da Universidade Católica, que me ajudou mesmo depois do parto;, relata. ;Vi que não estava sozinha, que outras mães também sentiam o mesmo. Eu não era um monstro.;
Hoje, Nícollas, primeiro rebento da jovem, tem 2 anos. A depressão foi tratada e superada, mas com o nascimento de Kaylon, o segundo filho de Ludmila, o sentimento de impotência e tristeza foi revivido. ;É claro que eu estava mais forte. O terreno não era mais tão desconhecido, mas tinha noção de que o desafio seria ainda maior. Duas crianças, responsabilidade em dobro. Além disso, quando o bebê nasce, tudo se volta para ele. É realmente sacrificante. A sensação que se tem é que passamos a existir em função desse ser que acaba de chegar. Viver pelo outro, ainda que seja um filho, não é fácil;, confessa.
A psicóloga Alessandra Arrais explica que boa parcela das mulheres imagina que a maternidade pode resolver todos os problemas e frustrações. A especialista observa que o mito de que a vida se completa e tem sentido apenas quando as mulheres são mães ainda está muito presente para elas. ;Um filho não resolve questões existenciais e a DPP não é rejeição ao bebê, e sim o medo do desafio que vem pela frente;, esclarece. Alguns fatores demonstram correlação com esse drama vivido por tantas mães. Mulheres com sintomas depressivos durante ou antes da gestação, com histórico de transtornos afetivos e perdas de pessoas importantes, infertilidade, vítimas de carência social, mães solteiras ou que passam por desarmonia conjugal são mais propensas ao mal.
;A maternidade é um momento de passagem que depende de maturidade psíquica para transcorrer sem conflitos. Na gestação e no puerpério (1), a mulher se dá conta da mudança de papel de filha para mãe, da inevitável transformação da autoimagem. Como se não bastasse, é preciso equilibrar a relação entre a maternidade e a sexualidade;, diz. E se engana quem pensa que o desafio é apenas delas. ;Essa realidade se impõe de tal forma que muitos homens sentem o baque e apresentam quadros depressivos também;, garante a psicóloga.
Complementar
O pré-natal psicológico é complementar ao pré-natal tradicional. A professora Janaína Castelo Branco, 30 anos, conta que se não fosse esse apoio teria caído em depressão após o nascimento da filha. ;Fui surpreendida por uma gravidez totalmente inesperada. Ainda não encontro palavras para descrever o que senti. Sou solteira, não tenho mãe, morava com meu pai e uma irmã em um apartamento pequeno, nunca havia trocado uma fralda, não tinha emprego seguro e nem sequer ideia de como fazia uma mamadeira;, relata. A gravidez foi encarada como o pior pesadelo de Janaína e ela entrou em pânico. A ideia foi assimilada aos poucos com conversas com outras mães e com as psicólogas. ;Quando minha filha (Sophia) nasceu, pude segurá-la nos braços e sentir a plenitude da maternidade. Ainda enfrento desafios, senti uma tristeza natural nos três primeiros meses do bebê, mas não caí em depressão. Foi uma grande superação;, considera.
O professor de obstetrícia da Universidade Católica de Brasília Alberto Zaconeta considera que o olhar do obstetra é fundamental para identificar as gestantes e mães com depressão. Segundo ele, aquelas que sentem tristeza e culpa tanto na gestação quanto no puerpério não conseguem disfarçar. ;O obstetra deve ter o cuidado de colocá-la a par da situação, esclarecer que não é a única a passar por isso. Também existem testes que rastreiam mulheres vulneráveis à depressão, com simples questionários, que podem ser respondidos na sala de espera;, explica. Zaconeta defende um pré-natal multidisciplinar para que a demanda de cuidados físicos e emocionais seja suprida. ;O pré-natal psicológico é uma iniciativa muito bem-vinda e poderia poupar muitas gestantes desse enorme desgaste. Como não é uma ferramenta à disposição de todas, a orientação dos obstetras pode ajudar, com toda certeza;, diz.
1 - Fase de mudanças
Fase do pós-parto em que a mulher experimenta modificações físicas e psíquicas. O puerpério começa no momento em que a interação hormonal entre o ovo e o organismo materno é interrompida. Isso ocorre logo depois do nascimento do bebê. O término do puerpério é impreciso, aceitando-se, em geral, que ele termina quando retorna a ovulaçao e a função reprodutiva da mulher. Nas puérperas que não amamentam, poderá ocorrer a primeira ovulação depois de seis a oito semanas do parto. Nas que estão amamentando, a ovulação retornará em momento praticamente imprevisível. Poderá demorar até um ano, a depender da frequência das mamadas.
; Fatores que influenciam
Biológicos
Variação nos níveis hormonais
Psicológicos
Sentimentos conflituosos da mulher em relação a si mesma como mãe, ao bebê, ao companheiro
Sociais
Situação social e financeira familiar da mulher gerando sobrecarga e distúrbios
; Diferenças básicas
Tristeza materna
Mutações no humor e sensação de que não vai conseguir cuidar do bebê. Dura em média duas semanas e tem remissão espontânea
Depressão pós-parto
Apresenta todos os sintomas de uma depressão em um momento especial da vida, que é o nascimento de um filho. Precisa ser acompanhada com terapia e medicamentos para não se tornar crônica. Casos graves podem levar ao suicídio
Psicose puerperal
Os sintomas aparecem nos três primeiros meses depois do parto e são mais intensos e duradouros, com episódios psicóticos, necessitando acompanhamento psicológico e internação hospitalar. Quadros de psicose colocam em risco a vida do bebê, porque, ao contrário da pessoa deprimida, o psicótico pensa em matar a criança