Mais que um médico, um consertador de menino. O conceito ; cunhado a partir da pergunta inusitada de um porteiro durante visita a um paciente: ;Você conserta o quê?; ; vai além do tratamento das doenças. No livro recém-lançado, Consertador de menino, o pediatra Rui Tavares traz mais que dicas de segurança e regras de criação para os novos pais. Ele apresenta uma aula de como um médico integral se porta. Trata de compreender o desenvolvimento infantil como um todo, o que envolve os pais, a escola, a babá, a casa, a alimentação, os hábitos de consumo.[SAIBAMAIS]
Formado na quarta turma de medicina da Universidade de Brasília (UnB), pediatra geral há 35 anos, pai de quatro filhos, tirou das três décadas de experiência com crianças brasilienses informações para escrever um livro objetivo e divertido, como uma boa consulta. Rui Tavares,que fará uma palestra e autografará o livro hoje, às 17h, na Livraria Cultura, conversou com a Revista.
Por que o senhor escolheu a medicina e a especialização em pediatria?
Comecei a sonhar em fazer medicina ainda no estudo secundário, ao observar as atividades dos médicos no interior. Achava bonito o benefício que trazia a tanta gente. No quarto ano do curso, me afeiçoei à pediatria. Gostava da maneira como as crianças lidam com a doença. Ela não somatiza. Se ela está doente, mas sem dor, sorri, brinca.
Quais as principais vantagens de trabalhar com saúde integral?
O avanço tecnológico da medicina aumentou o volume de informação. Por isso, surgiram diversas especialidades. Quando vários especialistas cuidam de uma criança, uma pessoa precisa ser a regente. Ela é o pediatra geral. Esse profissional tem também o conhecimento da família. Assim, se você sabe que os pais passam por um momento de crise emocional ou a criança piorou de algo que vinha melhorando, você tem que levar o fato em consideração.
Você notou uma mudança no perfil das mães nas últimas décadas?
Nos últimos 35 anos, período em que trabalho, houve uma queda acentuada da fertilidade no Brasil, comparável com a da China, que aplicou severas políticas públicas nesse período. Por aqui não houve uma política, mas uma mudança de comportamento. Chegamos a 1,8 filho por mulher. Isso aconteceu devido a questões econômicas. Muitos se mudaram da zona rural para a urbana. E não é mais preciso ter muitos filhos para trabalhar na lavoura. O alto custo de criar um filho na cidade e a mãe ter saído de casa para ir trabalhar são fatores que também influenciaram. Os adultos têm colocado as realizações pessoais acima do desejo de ter filhos.
E a participação dos pais na criação se tornou maior?
Houve uma melhora. Mas, apesar da maior participação do pai, a grande carga ainda é da mãe. Ela assumiu uma atividade a mais com o emprego. E continua sendo a dona de casa, a mãe e a companheira das atividades sociais das crianças.
Até onde é normal a ansiedade da mãe de primeira viagem e quando o sentimento passa a ser um problema?
Algumas décadas atrás, a informação que a mãe conseguia antes do primeiro filho era fornecida pelos pais, principalmente a avó. Hoje, ela também trabalha, não tem tempo para a tarefa. Daí, as mulheres buscam aprender por meio de livros, da internet ou mesmo do obstetra, do pediatra, de cursos de formação. O problema é que isso, tecnicamente, é uma orientação ideal, teórica. E é preciso entender que no cuidado de um filho não há condições de exercer o ideal. Até porque cada indivíduo é único e exige tratamento diferenciado. Como raramente a mãe conseguirá implantar o que foi aprendido exatamente no padrão, sofrerá ansiedade. A mãe da atualidade está muito mais aflita. A informação sem experiência gera mais angústia que tranquilidade.
São mais comuns as ligações de pais aflitos no meio da madrugada?
As ligações de madrugada acontecem mais quando os pais têm menos informação. Quando o médico faz uma boa orientação, eles ligam menos. Mas você percebe que a facilidade de ter atendimento de emergência leva os pais a encaminharem a criança ao pronto-socorro com mais rapidez do que deveriam em certas ocasiões. Por isso, mostro no livro quais os sinais de gravidade que indicam que a criança deve ser levada imediatamente ao hospital.
São comuns acidentes graves? Como evitá-los?
Sim, são muito comuns. O alto número justificaria uma campanha nacional do Ministério da Saúde. E são necessárias mudanças: desde aparelhos, que precisam ser aterrados para não causar curto-circuito na casa, até modificações no formato dos vasilhames de produtos de limpeza, em que há facilidade de ingestão. A questão é minimizar ao máximo os riscos, sabendo que acidentes podem acontecer. Não se pode, ao mesmo tempo, acabar com a liberdade da criança, é preciso o equilíbrio.
Você se tornou um melhor pediatra depois de ter tido filhos?
Sim, com certeza. No dia a dia, você percebe que uma série de práticas são inexequíveis ou demandam sacrifícios muito grandes. Mesmo em relação a fatos simples. Por exemplo, eu aconselhava com muito mais tranquilidade sobre como incentivar o hábito do sono no berço antes de ter filhos. Dizia que se pode deixar a criança chorar um pouco. Depois, percebi que é um sofrimento para todos e que, mais cedo ou mais tarde, isso se resolve. Além disso, só o filho faz você sair de certas situações que gostaria de mudar, mas achou que nunca conseguiria. Pelo filho você muda para tentar fazer o bem, fazer o seu melhor.
O aumento do custo de criação de uma criança se deve realmente a uma necessidade maior de gastos ou há consumismo demais?
Na classe média, houve aumento de consumo por conta de propaganda. Com isso, os pais acreditam que precisam de itens supérfluos. O aumento de carga tributária sem o devido retorno para a população fez com que a classe mais privilegiada ; tendo consciência da necessidade dos filhos terem uma boa educação ; pague os tributos e compre tudo de novo: segurança, saúde, educação, transporte. O custo de levar um filho até a faculdade é muito alto e as pessoas sabem disso de antemão. E são capazes de optar em não ter filho para usar esse dinheiro de outra maneira. Hoje, um filho é um projeto econômico, não só realização pessoal.
As crianças têm diversas tarefas e rotina atribulada. Quando o grande número de atividades se torna desvantagem?
O excesso de atividades é um problema muito comum. Houve uma mudança conjuntural nos últimos anos. Vivemos cada vez mais em ambientes menores. E, por causa da falta de segurança, não há mais a possibilidade de brincar embaixo do prédio, na rua. A criança está sempre sob a supervisão de um adulto, em atividades programadas. Mas nem sempre está disposta a fazer aquela atividade naquele momento. Na hora da brincadeira livre, ela faz tudo de uma vez: brinca de bicicleta, estilingue, desenha. Está treinando sua criatividade. Com as atividades programadas, a criatividade se perde um pouco. Ela pega transporte, perde um tempo grande com isso, é pressionada. E perde a oportunidade de ser espontânea. Outro cuidado é o pai não impor seus desejos à criança em detrimento dos dela.