Ciência e Saúde

Marcelo Gleiser diz por que deixou de buscar uma explicação única para o Universo e passou a se interessar pelo estudo da assimetria

postado em 22/03/2010 07:00 / atualizado em 22/09/2020 14:48

Durante entrevista à uma rádio brasiliense, o físico Marcelo Gleiser explicava, em plena Rodoviária do Plano Piloto, as teorias mais modernas sobre a astrofísica e a origem do Universo. Enquanto o pesquisador dava detalhes sobre a teoria do big bang, que afirma que tudo surgiu de uma imensa explosão há cerca de 14 bilhões de anos, um rapaz que passava pelo local perguntou: ;Então, o senhor quer tirar até Deus de nós?;. A provocação quase involuntária do homem foi capaz de influenciar o pensamento de um dos maiores cientistas brasileiros da atualidade. Dilemas como as relações entre ciência, religião e espiritualidade e os limites do conhecimento humano são apresentados em seu novo livro, Criação imperfeita ; Cosmo, vida e o código oculto da natureza (Record), lançado recentemente. Carioca, 51 anos, formado em física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), Gleiser tem mestrado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutorado pelo King;s College London, do Reino Unido. Ele, que desde 1991 é professor de física teórica na universidade americana Dartmouth College, em Hanover, conversou com o Correio sobre essa e outras questões que inquietam leigos e cientistas de todo mundo. Lidar com o mistério é com ele mesmo. Amanhã, o físico ministrará a Aula da Inquietação da Universidade de Brasília (UnB), evento em que cientistas de renome internacional abordam questões filosóficas do mundo contemporâneo e estimulam os universitários a refletir sobre seu papel no desenvolvimento da ciência. O senhor leva conhecimento de ponta na área da astrofísica para o leitor comum, que não tem grande bagagem científica. Como surgiu esse trabalho? Em 2007, eu lancei meu primeiro livro, chamado A dança do Universo, onde eu contava um pouco da história da cosmologia, de como o homem vem explicando a história do Universo, desde os mitos de criação até a ciência moderna. Eu fiquei surpreso com a receptividade das pessoas a esse tipo de ideia. O livro foi muito bem, ganhou o Prêmio Jabuti. Foi aí que percebi que existia um apetite muito grande das pessoas com relação a esse tipo de questionamento. Desde então, continuo fazendo isso, trazendo a ciência para as pessoas comuns. Quando o senhor decidiu que seria cientista? Acontecimentos da sua infância, como a morte prematura de sua mãe, e da sua adolescência conturbada influenciaram de alguma forma na escolha? Sem dúvida foram muito importantes. Nós somos produto de nossa história. Não há como evitar sermos uma combinação de nossos genes com a nossa história. Eu compartilho a minha história pessoal para mostrar ao leitor que eu também sou produto de um passado, que minhas escolhas profissionais e minha carreira também são fruto das experiências vividas por mim. Tento fazer o leitor embarcar em uma viagem intelectual, mas com um amigo, alguém que ele conheça. Humanizar a ciência. A ciência pode explicar tudo? O senhor ainda acredita que um dia o ser humano terá a resposta para todos os seus questionamentos? Não, eu acredito que a ciência não pode explicar tudo. O que não quer dizer que eu acredite que existam fenômenos sobrenaturais ou coisas desse tipo. O que todas as pessoas precisam saber é que a ciência é uma construção humana, é uma criação nossa, por isso ela explica o mundo da melhor maneira que a gente pode. Isso significa que, como somos criaturas limitadas, as nossas explicações do mundo também são limitadas. A ciência é uma narrativa, algo que criamos para entender o mundo em que vivemos. Ela reflete a humanidade nas suas maiores criatividades e também nas suas maiores limitações. O senhor passou grande parte de sua carreira trabalhando em uma expressão matemática unificadora, que conseguisse explicar tudo que existe no Universo. Hoje, afirma que essa unificação não existe. Como ocorreu essa mudança tão drástica de visão? A gente só pode tomar uma decisão dessas quando realmente faz parte do processo. O fato de eu ter trabalhado anos nessa área me equipou com muita habilidade técnica, com muita matemática, com muita bagagem conceitual, mas também com muita capacidade crítica para ver até que ponto aquele caminho que eu seguia estava certo ou não. Então, depois de anos de reflexão e pesquisa nessa área, eu comecei a ver que essa busca por uma teoria final era mais uma crença do que uma realidade científica. Então, o senhor acredita que nunca poderemos chegar a uma explicação única para todo o Universo? É muito importante as pessoas entenderem que a ciência se baseia nas medidas que a gente faz. Você pode ter a ideia mais genial do mundo. Se ela não for confirmada por experimentos, não é ciência. O que está acontecendo é que essa noção de teorias finais, de explicações únicas, são teorias que já estão no mercado há 30 anos e estão muito longe de serem testadas. Acho que temos de começar a pensar: ;Será que esse é o caminho certo ou será que a natureza está contando uma outra história pra gente e estamos nos recusando a ouvi-la?; Há uns oito anos, eu dei uma acordada e concluí que esse caminho que estamos seguindo com tanta avidez talvez seja o caminho errado. A ideia é tentar olhar para um outro caminho, e ver que ele faz sentido. Qual seria a alternativa para esse modelo de pensamento que busca uma teoria final? Essa ideia de uma teoria final, que seja uma explicação universal, é uma noção que depende muito da ideia de perfeição e simetria. De que, por trás das imperfeições e das variações do mundo, existe uma regularidade, um padrão. Só que, quando vamos olhando para o mundo, fazendo experimentos, a gente descobre que não é bem assim. Por que existe matéria? Por que existem galáxias? Porque existe a vida? Por que existe a vida complexa? Todos esses processos, que chamamos de formação de estruturas materiais ; como nós mesmos, que somos a estrutura material mais fascinante que existe, já que somos um bando de moléculas com capacidade de pensar ;, dependem de imperfeições, de assimetrias. A natureza cria por meio de suas imperfeições. Eu acho que esta é uma das lições mais importantes a serem aprendidas. Que não é na simetria, na perfeição, que nós vamos encontrar a verdade, mas, sim, focando nas diferenças que desvendaremos os mecanismos criativos da natureza. E a relação entre religião e ciência, o senhor acha que esses dois aspectos tão conflitantes podem estar de alguma forma ligados? Eu acredito que ciência e religião têm, sim, algo em comum. Acho que essa ideia de que existe uma unidade por trás das coisas é um ponto em comum. Essa história de que existe uma teoria final única é uma infiltração monoteísta na ciência. Por outro lado, acredito que essas noções, tanto religiosa quanto científica, estão erradas. Não é por aí que temos de ficar olhando para o mundo, mas é justamente tentando nos distanciar dessas questões abstratas de perfeição. Devemos olhar para o mundo como ele é, e não como gostaríamos que ele fosse. Sendo assim, a religião não acaba perdendo o seu sentido? Absolutamente não. A religião continua tendo a sua função. Quem sou eu para criticar as pessoas que acreditam em Deus? Eu acho que todo mundo escolhe no que quer acreditar. Existem dois tipos de pessoas: as sobrenaturalistas, que acreditam que existem explicações sobrenaturais, coisas que vão além do tempo, do espaço e da matéria, como deuses e espíritos; e as naturalistas, que acham que o fato de a gente não conhecer todos os detalhes não quer dizer que tenhamos de evocar entidades sobrenaturais. Já deu pra ver que eu sou um naturalista. Como é sua relação com a espiritualidade? As pessoas acham que, porque é cientista, você tem que ser uma pessoa racional, fria, materialista e que nega o valor da espiritualidade, quando é justamente o oposto. Dedicar a vida ao estudo da natureza, para tentar decifrar os mistérios da criação, é uma atitude profundamente religiosa e espiritual. Tenho uma atração muito profunda pela natureza, e o meu trabalho como cientista se reflete nisso. Você pode ser perfeitamente espiritual sem ser uma pessoa religiosa, no sentido ortodoxo da palavra. E eu acho que esse movimento de se entender a espiritualidade da natureza e a nossa relação espiritual com o mundo talvez seja uma nova forma de espiritualidade que esteja emergindo no século 21. Eu acho que essa nova forma de religiosidade vai ser extremamente importante para o futuro da humanidade, porque ela nos liga diretamente ao planeta Terra e à importância da vida. Em tempos de mudanças climáticas, essa nova forma de espiritualidade pode alterar a maneira que tratamos a Terra? No meu último livro, eu dedico um capítulo inteiro a uma espécie de manifesto ecológico. Acho que vivemos um novo paradigma, em que o homem se torna o centro do universo, que eu chamo de humanocentrismo. Nós somos seres extremamente raros e preciosos, e temos uma missão extremamente importante, que é a preservação da vida terrestre. Eu acho que nós temos que celebrar a nossa existência e fazer dela uma coisa construtiva para poder salvar este planeta. O que faz de nós seres tão especiais a ponto de estarmos no centro do Universo? Antigamente, existia uma noção de antropocentrismo, com origem no período da Renascença, em que o homem foi criado por Deus e que, por isso, a Terra era o centro do Universo, e nós éramos o máximo. Eu digo que não é nada disso. Quer dizer, o que a ciência moderna nos ensinou é que quanto mais a gente aprende sobre o mundo, menos centrais nós ficamos. A Terra não é o centro do Universo, nossa galáxia também não é o centro do Universo, nós somos formados de uma matéria que existe pelo Universo afora, somos criaturas perfeitamente naturais, não existe nada de sobrenatural na gente. Mas, por outro lado, quando a gente estuda a existência de vida em outros planetas, vemos que ela é muito rara. A vida complexa é mais rara ainda. Vida inteligente nem se fala. Isso nos torna extremamente importantes, por sermos seres pensantes no Universo, que é tão hostil. Essa é a temática do humanocentrismo: nós retornamos ao centro das coisas, não porque somos seres sobrenaturais, mas porque somos seres raros, preciosos e que vivem em Universo extremamente hostil à vida. No livro Cartas a um jovem cientista, o senhor compartilha experiências com jovens que queiram seguir o caminho da ciência. Que mensagem deixaria hoje para eles? Eu pediria para que eles não se deixassem abater pelo que se diz por aí, que não existe futuro para a ciência, que não existe emprego, porque existe sim. E é muito importante um cientista aprender a resolver problemas relacionados à ciência, mas também aprender a escrever e a falar bem para apresentar as suas ideias. Porque ideias que são boas não são ouvidas, se não forem bem expressas. Isso é uma lição muito importante a ser aprendida para quem quer seguir esse caminho. Ouça trecho da entrevista. Aula da inquietação Com Marcelo Gleiser # Amanhã, às 9h, no Teatro de Arena (câmpus da UnB do Plano Piloto) # O encontro faz parte da programação de boas-vindas aos calouros e é aberto também a professores e estudantes da educação básica. Entrada franca

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