Paloma Oliveto
postado em 29/03/2010 09:46
Três anos à frente da sala de aula minaram a saúde e o sonho da professora Edriane Madureira Daher, 39 anos, de mudar o futuro de crianças carentes por meio da educação. Em 1992, ela trabalhava na Escola Classe 325 de Samambaia, então um assentamento precário, quando perdeu a voz. Um calo nas cordas vocais a afastou definitivamente da atividade de lecionar, e Edriane precisou ser readaptada na Secretaria de Educação. Além do uso excessivo da voz ; eram três períodos de aulas por dia, incluindo o extinto ;turno da fome; (das 11h às 15h) ;, a professora tinha de lidar com situações de intenso estresse. Faltava material, incluindo papel e giz, a escola carecia de limpeza e as salas eram superlotadas. De acordo com uma pesquisa da Universidade de São Paulo (USP), o estresse está diretamente relacionado aos distúrbios vocais. Depois de 20 anos trabalhando do Hospital do Servidor Público da capital paulistana, a fonoaudióloga Susana Giannini resolveu investigar a relação entre os dois problemas. ;Pela própria experiência, percebia que os professores chegavam com distúrbios vocais por causa do uso excessivo da voz, mas também associados ao sofrimento da profissão;, diz.
[FOTO2]Por atender a um grande número de professores na situação ; pelo menos 150 por semestre ;, Susana direcionou a pesquisa para essa área ocupacional. Ela avaliou 167 professores de ensino infantil, fundamental e médio da rede municipal de São Paulo e os comparou a 105 colegas de trabalho, que lecionavam nas mesmas escolas, mas que não apresentavam problemas de saúde. A pesquisa mostrou que, no primeiro grupo, 70% dos que tinham algum distúrbio vocal também estavam esgotados pelo excesso de trabalho e pela pressão, classificada por eles como de média a alta. Já entre os professores ;saudáveis;, o índice de excesso de trabalho e pressão foi de 54,4%.
Segundo a fonoaudióloga, mesmo sem perceber, o professor acaba se cansando e ficando irritado ao ter de elevar a voz, coisa que acontece principalmente em salas lotadas e com acústica deficiente. Na pesquisa, ela também concluiu que a falta de autonomia é um fator agravante para o desenvolvimento de distúrbios vocais. Setenta e três por cento dos professores que possuíam alguma alteração da voz disseram sentir pouco controle sobre o próprio trabalho. Entre os saudáveis, o índice caiu para 62,1%.
O otorrinolaringologista Ronaldo dos Reis Américo, do Complexo Hospitalar Edmundo Vasconcelos, de São Paulo, explica que o sistema límbico, que controla, no cérebro, a parte emocional do ser humano, também está relacionado ao sistema nervoso motor. ;A prega vocal é uma estrutura em formato de fita, recoberta por um tecido muito delicado, a mucosa. Para o bom funcionamento da voz, é preciso um equilíbrio na função dos músculos da laringe. Inconscientemente, devido ao estresse, esse controle muscular pode ficar alterado;, diz.
De acordo com o médico, o primeiro sinal de que algo não vai bem é a rouquidão que aparece sem que a pessoa esteja resfriada, e persiste por mais de 17 dias. ;Com o passar do tempo, a pessoa sente dores musculares e uma sensação de aperto na garganta. Essa alteração prolongada pode favorecer o aparecimento de nódulos e pólipos na prega vocal, sendo que nesse último caso, é preciso fazer cirurgia;, diz. Ele lembra que muitas pessoas não sabem da relação entre o estresse e a voz. ;É algo negligenciado pelo paciente. Ele acha que a alteração pode ser explicada pelo cansaço ou pelo próprio envelhecimento;, diz.
Políticas públicas
;As políticas públicas de maior inclusão na educação e do controle de metas e qualidade na educação são muito boas, mas causaram uma sobrecarga para os professores. Nessa relação, existe um forte desgaste;, afirma a fonoaudióloga Susana Giannini. De acordo com ela, ao mesmo tempo em que há mais alunos e cobrança maior, não foram feitos investimentos suficientes na melhoria das condições de trabalho, como a adaptação acústica das salas de aula e os exercícios vocais preventivos.
A coordenadora da área de saúde do trabalhador do Sindicato dos Professores do DF, Maria José Correia Muniz, diz que os casos de professores com problemas na voz são extremamente comuns. ;O nosso trabalho é estressante, você trabalha, às vezes, como 500, 600 alunos. Em 2008, fizemos uma pesquisa com a Universidade de Brasília, que detectou muitos distúrbios vocais na categoria. Acredito que o estresse é um complemento para o uso excessivo da voz;, diz Maria José, cuja filha, também professora, já teve um tumor nas cordas vocais.
A professora Edriane Madureira Daher se recorda que chegou a lavar o chão da sala de aula da Escola Classe 325 de Samambaia, com a ajuda dos alunos. ;Uma vez, fizemos uma paralisação porque não tinha estêncil, álcool e papel. Os mimeógrafos também estavam quebrados. Você tenta fazer milagre e se sustenta só na voz, no desejo e no ideal de fazer a diferença, mas não é possível;, relata. Depois que a voz sumiu, Edriane foi a um otorrinolaringologista, que detectou um calo na corda vocal. Ela ficou um ano e meio afastada do trabalho, enquanto tentava se recuperar com a ajuda de uma fonoaudióloga. ;A gente estava trabalhando para eu voltar à sala de aula, mas o médico da Secretaria de Educação não aceitou e disse que, se eu voltasse, estaria sempre com atestados;, diz.
Para não abandonar a área, Edriane procurou funções pedagógicas no período de readaptação. Mesmo de licença médica, fez um curso de história do Distrito Federal, o que a ajudou a trabalhar, posteriormente, com educação ambiental em escolas das satélites. Hoje, licenciada para terminar um mestrado sobre como os professores do Recanto das Emas trabalham a imagem da escravidão na sala de aula, Edriane não sabe a função que a aguarda na volta. ;Quero muito fazer algo ligado aos professores e aos alunos. A grande frustração de que é readaptado é ir para a área administrativa;, conta.
;O professor adoece no trabalho e paga sozinho o preço disso;, critica a fonoaudióloga Susana Giannini. A pesquisa que ela fez constatou que os professores com distúrbios vocais têm chances de seis a nove vezes e meia maior do que os outros de ficarem incapacitados antes de chegar à idade de se aposentar. Como o problema não é considerado oficialmente uma doença ocupacional, quando readaptado, o professor perde direito à aposentadoria especial e a outros benefícios. Atualmente, algumas entidades fazem lobby junto ao Ministério da Previdência para incluir os distúrbios da voz no rol das doenças de trabalho.