postado em 04/05/2010 07:00
Se você não pode vencer um inimigo, junte-se a ele, diz o ditado popular. E é justamente isso o que fazem as cigarrinhas da espécie Guayaquila xiphias, parentes próximos dos pulgões. Como estratégia de sobrevivência, esses pequenos animais herbívoros, muito comuns no cerrado, passaram a produzir uma substância açucarada que seus maiores predadores, as formigas, costumam buscar nas folhas das plantas. Ao ;presentear; o inimigo com gotas de doce, a cigarrinhas deixam de ser atacadas. O curioso sistema de defesa foi descoberto durante uma pesquisa realizada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), cujos resultados foram publicados na revista norte-americana The american naturalist.O sistema funciona como uma verdadeira camuflagem. A formiga, ao perceber a gota de açúcar na G. xiphias, a confunde com uma folha. ;As formigas têm um cardápio misto. Além do açúcar presente nas folhas, elas também são interessadas em doses de proteína e lipídio. Por isso atacam outros insetos herbívoros, como o gafanhoto e o besouro. Assim, elas acabam sendo úteis para as plantas, porque matam os bichos que devoram as folhas;, conta Paulo Sérgio de Oliveira, professor de ecologia do Instituto de Biologia da Unicamp e orientador da pesquisa.
O cerrado tem plantas mais adocicadas, que atraem mais as formigas. ;As plantas tornaram-se, ao longo do tempo, mais atrativas para as formigas, pois 30% das espécies de árvores desenvolveram glândulas capazes de atrair formigas ou abrigam parasitas que podem servir de alimento ou fornecer alimento para as formigas, como as guayaquilas;, explica Kleber del Claro, professor do Laboratório de Ecologia Comportamental e de Interações da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
Por uma questão de sobrevivência, algumas espécies de insetos copiaram a estratégia das plantas. ;Ser herbívoro no cerrado é problemático, porque sempre vão existir várias formigas andando pelas folhas. E esses insetos herbívoros não só se alimentam das plantas como colocam os ovos sobre elas, precisando também defender para sua prole;, analisa Oliveira.
Química
As cigarrinhas possuem na superfície de seu corpo uma espécie de sebo repleto de lípidos cuticulares, que formam uma roupa química doce e apetitosa. As formigas bebem essas secreções sem atacar as guayaquilas e acabam as protegendo de outros inimigos naturais. A relação é mutuamente benéfica: a formiga consegue o alimento, e a cigarra ganha um guarda-costas.
O que intrigava os pesquisadores, no entanto, era o fato de a formiga não matar as cigarrinhas depois de se saciar com o açúcar. ;Descobrimos que as formigas são guiadas por estímulos. Seu universo sensorial é químico. Elas tateiam o mundo com suas antenas, que passam para o cérebro o que é aquele corpo que elas estão tocando;, explica Oliveira.
Os cientistas descobriram que, para enganar a formiga, a cigarrinha se assemelha à planta do ponto de vista químico. Assim, quando o predador se alimenta da glândula da guayaquila, não identifica o inseto como uma importante fonte alimentar. ;Quando ela libera açúcar, é como se fosse um néctar da planta. A roupa química é igual. Isso desestimula a formiga a atacar, porque ela acha que não é algo comível, já que ela não come a planta onde ela vive;, revela o orientador do estudo.
Para comprovar a teoria, os pesquisadores fizeram testes em ambientes distintos e com insetos diferentes. Para começar, eles retiraram a cigarrinha do local de costume e a colocaram em uma outra espécie de planta, com composição química diferente. Nesse caso, a formiga não só bebeu o açúcar como atacou o inseto. A camuflagem química é nula se o ambiente for diferente, constataram os cientistas.
Em outro teste feito em laboratório, o vestido químico da guayaquila foi retirado e colocado em uma larva, que, por sua vez, foi disposta sobre uma planta de composição química semelhante. As larvas não foram atacadas. ;Elas conseguiram enganar o inimigo, que deixou de comê-las;, comenta Oliveira.
Segundo o pesquisador, os insetos herbívoros desenvolveram esse mecanismo por meio de um longo processo de evolução. A seleção natural ocorre paralelamente à capacidade da espécie de procriar. ;Uma cigarrinha mutante que possui uma semelhança com a planta, portanto, vai ter mais chances de ter uma prole, e isso é preservado na geração seguinte;, diz o professor da Unicamp.
Assim como a guayaquila teve de se adaptar para preservar sua espécie, a camuflagem usada pelos insetos pode influenciar no comportamento das formigas. ;Evoluir é se modificar ao longo do tempo, mas isso nem sempre é sinônimo de progresso. Um organismo pode evoluir para sua extinção, por exemplo. Toda interação entre organismos produz resultados positivos e negativos sobre a sobrevivência dos animais. Assim, a camuflagem dos herbívoros pode ter impacto sobre a evolução de seus inimigos naturais ou espécies associadas;, conclui Kleber del Claro, da UFU.
Milhares de espécies
São conhecidas mais de 11 mil espécies de formigas no mundo, mas alguns cientistas acreditam que o número pode chegar a 20 mil. No cerrado, existem cerca de 2 mil. Na Floresta Amazônica, formigas e cupins juntos representam 1/3 de toda a biomassa animal, o que mostra a importância desses insetos para o meio ambiente.
; ARTIGO
Relações entre formigas, plantas e insetos herbívoros
Formigas estão por toda parte. Nos incomodam em nossas casas e em nossos jardins. No entanto, em vegetação natural e em sistemas agrícolas familiares e orgânicos elas podem ter um papel importante no controle de outros insetos. Ao contrário da impressão geral, a maior parte das formigas não corta plantas. Grande parte delas se alimenta de outros insetos e de substâncias açucaradas (néctar) de plantas.
Muitas plantas, especialmente no cerrado, possuem glândulas em suas folhas (nectários extra-florais) que atraem formigas. As formigas defendem a sua área de alimentação (nectários) e atacam insetos herbívoros que estejam por perto, funcionando como uma defesa da planta. Por outro lado, alguns insetos herbívoros apresentam características especiais para atrair formigas. Os mais conhecidos são os pulgões e as cochonilhas que liberam substância açucarada para as formigas e ganham proteção contra predadores e parasitas. Lagartas de algumas borboletas das famílias Lycaenidae e Riodinidae também utilizam essa estratégia e obtêm proteção das formigas.
Esta é uma relação conhecida como mutualismo em que a formiga e a planta ou a formiga e o inseto herbívoro são beneficiados. Esse tipo de relação ocorre em outros sistemas biológicos como, por exemplo, entre plantas e seus polinizadores (abelhas, beija-flores, morcegos, etc.) e entre plantas e seus dispersores de sementes (aves, morcegos, roedores, etc.). Esta complexidade de interações que ocorre na natureza ilustra o principio biológico de que a ausência de uma espécie ou de um grupo de espécies no ambiente afeta todo um outro conjunto de espécies que a primeira vista não parecem ser próximas.
As relações de mutualismo envolvendo formigas vêm sendo estudada no Brasil por vários pesquisadores, com destaque para o grupo da Univ. Estadual de Campinas liderado pelos Profs. Paulo S. Oliveira e André Freitas e o grupo do Prof. Kleber DelClaro na Univ. Federal de Uberlândia. Os licenídeos, a segunda maior família de borboletas, são muito mal conhecidos no Brasil. Os trabalhos do Prof. Carlos E. G. Pinheiro (Dept. de Zoologia, UnB) e colaboradores mostraram a existência de mais de 100 espécies de licenídeos no Distrito Federal. Atualmente uma estudante do Mestrado em Ecologia (Instituto de Biologia, UnB), Neuza A. P. da Silva, está investigando quais plantas de cerrado são utilizadas pelas lagartas dessas borboletas e quais espécies apresentam características de atração de formigas.
Helena Castanheira de Morais é pesquisadora e professora do Departamento de Ecologia da Universidade de Brasília