Ciência e Saúde

Rara e complexa

Caracterizada pela sindactilia, dedos colados, a síndrome de Apert ocorre em um entre 70 mil nascimentos e pode ser tratada com cirurgia. Especialistas afirmam que ela é hereditária

postado em 16/06/2010 07:00

Sheia com o filho Kalebe, que convive com a síndrome; e Denise com Maria Clara: primeiro o susto, depois a benção de ser uma referênciaA caçula da enfermeira Denise dos Anjos Neves, 35 anos, nasceu há dois meses em um hospital particular da Asa Sul. Maria Clara veio ao mundo de parto cesárea, depois de um pré-natal rigoroso e sem complicações. Mas na hora de receber a filha no quarto, Denise se deparou com um problema que chegou a fazer seu leite secar. ;Depois da cirurgia, eles demoraram a trazer a minha filha. Meu marido e minha mãe disseram que ela havia nascido com um defeito nas mãos, que não era nada grave. Mas o pediatra que consultou a Maria Clara não soube explicar o que era;, lembra Denise.

No dia seguinte, a menina recebeu o diagnóstico de uma síndrome rara. Denise então passou a enfrentar uma verdadeira maratona de investigações médicas e muita desinformação. Maria Clara nasceu com a síndrome de Apert, uma anomalia que altera apenas um dos cerca de 25 mil genes humanos. A síndrome muda o gene FGFR2, que codifica o fator de crescimento de fibroblastos ; células do tecido conjuntivo responsáveis por estimular o fechamento das suturas no crânio.


[SAIBAMAIS]

As crianças que nascem com Apert têm o fechamento precoce dessas suturas, entre três e seis meses de idade, quando o normal é que isso ocorra entre o primeiro e o segundo ano de vida. ;Com isso, o cérebro fica sem espaço para crescer. A correção depende de uma cirurgia craniofacial;, esclarece o presidente da Sociedade Brasileira de Genética Clínica, Salmo Raskin.

Uma das características mais marcantes do Apert é a sindactilia, a fusão dos dedos das mãos pela pele e pelos ossos, fazendo com que a mão fique em formato de colher. A sindactilia também pode ocorrer nos pés e passa a ser chamada polidactilia, devido ao aumento numerário de dedos.

Sem números
O neurocirurgião Adriano Yacubian Fernandes, professor da Universidade de São Paulo (USP), explica que a síndrome é adquirida geneticamente. Filhos de portadores do Apert têm 50% de chances de nascer com a anomalia. ;Mas a mutação do gene pode ser aleatória, em indivíduos que não tenham casos na família. O que sabemos é que pais maiores de 35 anos são mais propensos a gerar filhos com o Apert, especialmente se o homem for mais velho;, diz Adriano, que já escreveu duas teses de doutorado sobre o tratamento de pacientes com a síndrome.

O Brasil não tem estatísticas oficiais sobre a incidência dessa síndrome. O geneticista Salmo Raskin acredita que a ocorrência seja de um para cada 70 mil nascidos vivos. Também não há nenhuma associação de pais de portadores do Apert no país. Por isso, a maioria deles se comunica pela internet. A enfermeira Denise Neves, por exemplo, usou o site de relacionamentos Orkut para encontrar a dona de casa Sheila Cristina Müller, 35 anos, mãe de Kalebe Gomes Lopes, de 9.

O menino nasceu no interior do Maranhão e só teve a síndrome diagnosticada três meses depois. ;Fiquei com medo de voltar para Brasília de avião nesse período. Ninguém sabia o que ele tinha e eu achei que a viagem pudesse piorar as coisas;, conta Sheila. Kalebe fez a cirurgia craniofacial com 1 ano e 9 meses de idade. A correção das mãos ; que separou o dedão dos demais ; foi feita aos 6 anos, no Hospital Sarah Kubitschek.

Sheila, porém, reclama que a cirurgia das mãos só ocorreu para alcançar um objetivo funcional. ;Agora, ele está com as mãos em formato de pinça, consegue pegar as coisas, escrever. Mas há todo o lado psicológico da criança, de estar com os dedos grudados. Acho que os médicos esquecem um pouco disso;, opina Sheila.

Protegido com o afeto
O professor Adriano Yacubian destaca que a qualidade de vida dos portadores da síndrome depende do envolvimento de uma equipe multidisciplinar de profissionais da saúde. ;O diagnóstico deve ser feito o quanto antes. É possível identificar o Apert ainda quando a criança está na barriga da mãe, através do exame de ultrassom;, diz o especialista. A cirurgia de crânio precisa ser feita até que a criança complete 1 ano de vida para que não haja prejuízo nas funções cerebrais.

Na síndrome de Apert, não há, obrigatoriamente, comprometimento cognitivo. ;O grau de desenvolvimento é muito variável, há crianças com QI baixo (quociente de inteligência) e outras com o QI normal;, reforça o professor Adriano. Para Daniela Alvarez, presidente da Associação Argentina da Síndrome de Apert, o mais importante é a inserção social dos portadores. ;Queremos melhorar a qualidade de vida dos nossos filhos. É necessário que eles não sejam rotulados de deficientes;, afirma Daniela.

Kalebe Gomes frequenta uma escola normal e, apesar de ter feito a operação no crânio depois de completar 1 ano, não apresenta problemas cognitivos. ;Ele se dá superbem com os colegas. Muitos deles o protegem na sala de aula;, conta a mãe de Kalebe.

Sheila e a enfermeira Denise temem o preconceito que seus filhos podem sofrer quando ficarem mais velhos. No entanto, o principal desafio é buscar orientação sobre a síndrome. ;Se hoje eu sei que meu filho poderá passar por cirurgias, é porque fui curiosa e procurei me informar. Nenhum médico me falou sobre a possibilidade de puxar o maxilar para frente ou fazer o preenchimento na região da órbita ocular;, exemplifica Sheila, que usa a rede pública(1) de saúde.

Para Denise, o nascimento de Maria Clara é uma oportunidade de levantar a bandeira para outras mães. ;Primeiro, você pergunta ;por que eu?;. Mas depois, percebe que isso é um presente de Deus, uma forma de virar referência para outras pessoas.;

Atendimento precário
Segundo a Sociedade Brasileira de Genética Clínica, em 99% dos municípios brasileiros não há atendimento em genética pela rede pública de saúde. Isso prejudica o registro dos casos de síndrome de Apert e as famílias dos portadores da anomalia, que, muitas vezes, demoram para conseguir o diagnóstico.


A doença

A síndrome de Apert é uma das quase 6 mil anomalias genéticas conhecidas. Foi descrita em 1906 pelo médico francês E. Apert. Saiba mais sobre as principais características da síndrome:

  • Fechamento precoce das suturas do crânio: a cabeça humana é composta de placas. Quando a criança nasce, elas não estão completamente fechadas. Demora de um a dois anos para que isso ocorra.

  • Nas crianças com Apert, o fechamento precoce dessas aberturas no crânio pode levar ao estrangulamento do cérebro.

  • Fusão dos dedos: a sindactilia que caracteriza o Apert é a que une os dedos das mãos e dos pés pela pele e ossos. A separação pode ser feita conforme cada caso: em situações mais simples, é possível separar todos os dedos. Em outras, somente o polegar. A separação dos dedos dos pés só é recomendada se isso estiver atrapalhando o andar da criança.

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