;Com este novo saber, a humanidade está a um passo de adquirir um imenso poder de cura.; Foi com essa frase que o então presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, anunciou, em 26 de junho de 2000, que estava pronto o primeiro rascunho do sequenciamento do genoma humano, um projeto ambicioso que custou cerca de US$ 3 bilhões e prometia trazer a solução para a maior parte das doenças. Dez anos depois, porém, os avanços se concentraram muito mais na abertura de novos campos de pesquisa do que em tratamentos para a população.
A pesquisa genômica começou oficialmente em 1990, com recursos públicos especialmente dos Estados Unidos, do Japão e da Europa e participação de mais de mil pesquisadores ao redor do mundo. A ideia era, em um prazo de 15 anos, identificar e sequenciar as mais de 3 bilhões de bases que formam o DNA dos seres humanos. O mapeamento do chamado ;livro da vida; levaria menos tempo, em grande parte devido à entrada em cena da empresa Celera, liderada pelo biólogo John Craig Venter(1), que anunciou, em 1998, ser capaz de concluir a missão em apenas três anos (leia memória).
Na época, estimava-se que as doenças que atingem mais de 80% das pessoas do mundo, como a hipertensão e o diabetes, poderiam ter novos tratamentos desenvolvidos a partir desses estudos. Hoje, muito pouco mudou no tratamento da maioria dos males. ;É certo que o Projeto Genoma Humano ainda não teve efeito direto nos cuidados médicos da maioria dos indivíduos;, reconheceu recentemente Francis Collins, ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisa do Genoma Humano e atual diretor dos Institutos Nacionais da Saúde (NIH) dos Estados Unidos .
Se a declaração surpreende leigos, não surte o mesmo efeito entre os cientistas. Para Marcelo Valle de Sousa, professor do Departamento de Biologia Molecular da Universidade de Brasília (UnB), o genoma é uma peça importante, mas não a única do quebra-cabeça genético humano. ;Atualmente, a pesquisa não trouxe tantos resultados como as pessoas acreditavam. Nós cientistas já sabíamos que para isso seriam necessários investimentos em outras áreas correlatas à genômica, como a proteômica (estudo das proteínas) e a genética clássica;, explica.
Para Valle, o principal benefício trazido pelo sequenciamento do DNA, foi a abertura de novos campos de estudo. ;De posse do mapeamento genômico, é bem mais fácil compreender o funcionamento de outras estruturas, como as proteínas;, explica. ;Há inclusive articulações na comunidade científica para a criação de um projeto proteoma, que vai mapear todas as proteínas dos seres humanos;, completa.
Raras
Com relação aos tratamentos, os principais avanços trazidos pelo sequenciamento do genoma estão relacionados às doenças raras. ;Hoje, mais de 7 mil doenças que, sozinhas, atingem poucas pessoas têm a sua causa genética conhecida, como é o caso da fibrose cística. Mas isso aconteceu porque elas são causadas por um gene apenas;, conta Salmo Raskin, médico e cientista brasileiro que participou do Projeto Genoma Humano, durante sua pós-graduação na Universidade de Nashville, nos EUA. ;Doenças com incidência maior, como o câncer, o diabetes e a hipertensão, têm, além de uma causa ambiental, a influência de dezenas ou até milhares de genes. Por isso seu estudo é tão difícil;, completa o presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica.
Apesar de os resultados não terem sido tão contundentes como se esperava, muitos cientistas acreditam que as pesquisas criaram uma nova maneira de fazer ciência. ;Estamos vivendo uma nova revolução genômica, alavancada por sequenciadores de DNA de segunda geração, altamente paralelos, 50 mil vezes mais rápidos do que os de 2000;, explica o pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Sergio Danilo Pena, que participou do comitê diretor do Projeto Genoma entre 1994 e 1996. ;Por outro lado, essas milhões de bases lidas estão em fragmentos muito pequenos que, para a montagem de um genoma completo, têm de ser concatenados como em um quebra-cabeça gigantesco;, pondera.
Na opinião de Mayana Zatz, diretora do Centro de Pesquisa em Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP), resultados mais concretos surgirão com o tempo. Para ela, nos próximos 10 anos, a maneira de tratar doenças será profundamente alterada. Os avanços se concentração especialmente na área de farmacogenômica. ;Hoje, quando você toma um remédio, você é uma cobaia, porque nós temos respostas diferentes às drogas. Com o conhecimento do genoma, nós vamos poder identificar essas diferenças e tomar remédios personalizados, na quantidade adequada para cada um. Isso vai revolucionar a medicina;, acredita.
Célula ;artificial;
Venter voltou a ser notícia no mundo todo recentemente depois de anunciar a criação, por pesquisadores de seu instituto, da primeira célula replicante comandada por um DNA sintético, feito em laboratório. O biólogo diz que o estudo permitirá inúmeras aplicações no futuro, de tratamentos de doenças a criação de algas que limpem as águas do oceano.
Ouça trecho da entrevista com a pesquisadora Mayana Zatz.
Memória
Disputa entre público e privado
Em 1998, o Instituto Nacional de Pesquisa do Genoma Humano ganhou um concorrente na corrida científica pelo sequenciamento do DNA. A empresa privada Celera, dirigida por John Craig Venter, se propôs a fazer o mesmo trabalho em apenas três anos e gastando menos.
A corrida terminou empatada. Apesar de anunciada a conclusão em 2000, os trabalhos continuaram. Em 2001, os artigos das pesquisas foram publicados quase simultaneamente. A revista científica britânica Nature trouxe os detalhes dos estudos liderados por Collins e, no dia seguinte, a publicação americana Science descrevia a pesquisa da Celera. Mesmo publicados os primeiros resultados, foi em 2003, 50 anos depois de James Watson e Francis Crick desvendarem a estrutura do DNA, que a versão final das duas pesquisas ficaram prontas.