Jornal Correio Braziliense

Ciência e Saúde

Pesquisadores descrevem pela primeira vez como falhas no cérebro podem interferir na dependência das drogas

Os resultados de uma pesquisa publicada na revista especializada Science trazem uma nova esperança para o tratamento de dependentes químicos. Pela primeira vez, cientistas conseguiram entender por que alguns usuários de drogas não conseguem se ver livres da substância, enquanto outros podem consumi-las apenas eventualmente. A resposta para isso está em uma falha na plasticidade sináptica do cérebro. O fenômeno, que ocorre em todas as áreas do órgão, consiste na forma pela qual os neurônios alteram sua capacidade de comunicação.

Segundo Pier Vincenzo Piazza e Olivier Manzoni, pesquisadores do Neurocentro Magendie, em Bordeaux, na França, é a primeira vez que se demonstra a correlação entre a plasticidade sináptica e a dependência química. Os dois lideraram a equipe de cientistas que assinam o artigo da Science. De acordo com eles, o resultado contradiz as suposições atuais sobre o mecanismo do vício. Até agora, os estudiosos pensavam que o uso contínuo de drogas acabaria danificando as estruturas cerebrais, fazendo com que o usuário precisasse, cada vez mais, da substância. A nova pesquisa indica o contrário: as pessoas ficariam viciadas devido a um defeito pré-existente em seus cérebros.

Os autores afirmam que o consumo voluntário de drogas é um comportamento encontrado em muitas espécies animais. Porém, há tempos considerou-se que a dependência, definida como o consumo compulsivo e patológico, seria algo encontrado apenas em humanos, e teria forte relação com as estruturas sociais.

Em 2004, a equipe de Piazza mostrou, contudo, que os roedores também podem se viciar, consumindo cocaína sem que nenhum pesquisador precise ministrar a droga, bastando deixá-la próxima deles. Por isso, ele garante que homens e ratos compartilham muitas semelhanças na dependência química. Em particular, o fato de que nem todos os que experimentam se tornam viciados. Ao contrário, garante Piazza, apenas um pequeno número de homens ; e ratos ; ficam dependentes de drogas. Essa pesquisa abriu o caminho para o estudo biológico do vício.

Aliado importante
O objetivo principal do estudo foi verificar as modificações fisiológicas existentes no cérebro do dependente químico, de forma a possibilitar o desenvolvimento de terapias-alvo para o problema. ;Entender os mecanismos biológicos que levam à dependência química ou ao controle do uso por parte dos consumidores pode nos fornecer uma ferramenta que combata as falhas na plasticidade sináptica, um estado fisiológico que leva à dependência;, disse Piazza ao Correio, por e-mail.

Na pesquisa, Pier Vincenzo Piazza e Oliver Manzoni estudaram as estruturas cerebrais de ratos que receberam a mesma quantidade de droga, mas apenas alguns deles ficaram viciados. Ao compará-los, a equipe verificou que os animais que ficaram dependentes perderam permanentemente a capacidade de produzir um tipo de plasticidade sináptica conhecida como depressão de longo prazo (LTD, sigla em inglês). Trata-se da habilidade que as sinapses ; regiões de estímulo de comunicação entre os neurônios ; têm de reduzir sua atividade sob o efeito de certos estimulantes. A LTD tem um papel importante na formação de novas memórias.

Depois de um pequeno tempo de uso da cocaína, a LTD não se modifica. Porém, após um período longo de consumo, um significativo deficit aparece em todos os usuários. Sem essa plasticidade, que permite às pessoas aprender coisas novas, o cérebro do consumidor de drogas esquece mais rapidamente os efeitos da substância química, fazendo com que seja necessária uma ingestão cada vez maior para satisfazê-lo. Com isso, abre-se a porta para o desenvolvimento do consumo compulsivo.

Na maioria dos usuários, o cérebro é capaz de produzir adaptações biológicas, que permitem neutralizar os efeitos da droga e recuperar um LTD normal. Porém, a falta de plasticidade observada nos dependentes faz com que o cérebro não consiga combater essa deficiência. A falta permanente de plasticidade sináptica poderia explicar por que, nessas pessoas, o controle no consumo das substâncias químicas vai se perdendo, ao mesmo tempo em que surge o vício. ;É no cérebro dos indivíduos que não ficam dependentes que vamos encontrar a chave para uma terapia efetiva para o abuso de drogas;, apostam Piazza e Manzoni.

Pouco acesso
De acordo com o Relatório Mundial sobre Drogas divulgado pelas Nações Unidas, lançado no mês passado, falta serviço de tratamento para os usuários de drogas. A estimativa é de que 20 milhões de dependentes químicos ; somente um quinto do total ; estejam recebendo algum tipo de terapia adequada. ;O tratamento da dependência de drogas deve fazer parte dos serviços de saúde em geral;, alertou o documento do Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime (Unodoc).