Flávia Duarte
postado em 01/08/2010 12:14
Dentro de laboratórios, diante de microscópios e culturas celulares invisíveis a olho nu, cientistas de todo o mundo tentam quebrar a patente divina da criação da vida. Não, eles não querem ser deuses e dar origem ao ser humano. Mas estão ávidos para descobrir como as células funcionam e como elas se transformam em cada órgão e pedacinho do corpo. Buscam desvendar o surgimento das doenças e encontrar uma maneira de freá-las ou de tratá-las.
Esse é o objetivo de um grupo numeroso de pesquisadores que se dedica a decifrar a essência das células-tronco (CTs). As conhecidas células-mães são capazes de se transformar em qualquer tecido humano. Com o domínio sobre elas, os médicos falam na tal terapia celular, que permitiria substituir as células defeituosas por outras novinhas em folha. Bastaria reprogramá-las e pronto: elas dariam origem a outras saudáveis. Teoricamente, isso abriria um leque de opções para a cura das mais diversas doenças, tornaria possível reverter danos surgidos no percurso da vida ou até interromper o envelhecimento. Será?
Quando se fala em células-tronco, mistura-se o fascínio do controle sobre a natureza, a esperança e as dúvidas. Apesar do engajamento do mundo científico, ainda será preciso testar o comportamento dessas células em laboratório antes de ser uma realidade terapêutica. Muitos resultados já foram obtidos em animais de pequeno porte e até em humanos, mas a maior parte dos testes ainda não pode ser estendido para a espécie humana, já que as células-tronco ainda não foram totalmente "domadas" e, em alguns casos, podem causar danos se injetadas no corpo.
No entanto, o uso terapêutico delas está mais próximo do que se imagina. Os especialistas falam em um prazo entre cinco e 10 anos para que a terapia celular seja efetivamente aplicada em seres humanos e, assim, mudar a vida de muita gente que sofre com doenças graves e sem cura. Até lá, pode-se dizer que as pesquisas estão cada vez mais avançadas - em todas as áreas, inclusive com aplicações que já apontam resultados bem-sucedidos.
A Revista fez um levantamento em laboratórios e universidades brasileiros para ter uma ideia do tamanho da promessa. A conclusão é que essas estruturas invisíveis serão usadas para tratar da calvície a problemas cardíacos. E o melhor: poderá acontecer em breve.
As matriarcas
Para entender o funcionamento da célula-tronco de maneira simplificada, tente responder à seguinte pergunta: como é possível que um corte seja cicatrizado ou um osso regenerado? A resposta é que existem, em todos os 216 tecidos do corpo, células que podem se transformar, a qualquer momento, em outra com uma função específica. Assim, seria possível substituir uma célula com dano, desde que a célula-mãe fosse reprogramada com a orientação de corrigir o erro.
O que ainda não se sabe explicar exatamente é o mecanismo que desencadeia a diferenciação dessa célula. O que faz com ela se transforme em uma célula do sangue e não na de um músculo, por exemplo? Outra questão que ainda está em aberto é como interromper tais modificações. Para injetar uma CT no organismo com o objetivo de que ela se transforme em um determinado tipo de célula, é necessário ter segurança do momento em que o processo será concluído. É preciso, então, desenvolver um sistema que faça com que a célula-tronco se incorpore à parte do corpo desejada e funcione como se fosse parte natural dela. Caso contrário, poderá se transformar em estruturas perigosas e se diferenciar em tumores.
A geneticista Lygia Veiga Pereira, chefe do Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias (Lance), é uma das profissionais brasileiras dedicadas a encontrar tais respostas. Ela foi a primeira cientista brasileira, em 2008, a conseguir multiplicar as CTs retiradas de embriões congelados em clínicas de fertilização em São Paulo. Hoje, se dedica a pesquisar o funcionamento e a transformação do embrião. "Queremos definir qual o comando do DNA dado para essa célula se especializar. Buscamos entender o complexo caminho em que genes são ligados e outros desligados."
O poder dessas células
Apesar das lacunas e do longo caminho de testes e análises antes de a terapia celular beneficiar de fato milhares de pessoas, alguns tratamentos com células-tronco já são realidade. As CTs retiradas do cordão umbilical, por exemplo, são reconhecidamente eficientes no transplante de medula óssea. "Há 21 anos, um menino de seis anos com anemia de Fanconi foi transplantado em Paris com o sangue de cordão umbilical (SCU) de seu irmão. Embora imunologicamente compatível, a maioria dos pesquisadores e médicos, na época, duvidava que seria possível recompor a medula óssea após a quimioterapia. Entretanto, o transplante ocorreu sem incidentes e a criança teve reconstituída sua medula, seu sangue e seu sistema imune com as células da doadora", exemplifica a médica hematologista Fabiana Serra, diretora da Cryopraxis, um banco particular de sangue. A tal criança está viva e participou das comemorações de 20 anos do primeiro transplante de células-tronco obtidas de sangue do cordão umbilical, em dezembro do ano passado.
Atualmente, o sangue do cordão é congelado e armazenado em Bancos de Cordão Umbilical e Placentário, públicos e privados, que representam a chance de cura para milhares de pessoas com leucemia, linfomas, anemias graves e outras 70 doenças relacionadas ao sistema sanguíneo e autoimune. Ao se implantar as células-tronco do cordão no organismo da pessoa doente, elas substituem as cancerosas, que foram eliminadas por quimioterapia, por outras normais.
A expectativa, porém, é de que essas mesmas células, obtidas na hora do parto, possam ser a solução para outros tipos de patologias. Na esperança de que as pesquisas apontem outras aplicações do uso das células do cordão, a família de Miguel Sebben congelou o cordão umbilical do recém-nascido Luiz Henrique. O sonho é de que os avanços da medicina permitam usar o material para ajudar o irmão do pequeno, Lucas Sebben, que há três anos ficou tetraplégico depois de um acidente, quando tinha 18 anos. Uma das esperanças de voltar a andar está depositada no sangue do irmão.
"Uma opção seria injetar as células na medula rompida e esperar que elas se transformem em células neurológicas, possibilitando a recuperação dos movimentos. Outra seria transformá-las em células neurológicas antes de injetar. Ainda não se sabe quais serão os resultados, mas em Israel as pesquisas com uso de células de cordão umbilical para tratamentos paraplegias estão bem avançadas", conta o médico Carlos Alexandre Ayoub, diretor-clínico do Centro de Criogênia Brasil, em São Paulo, que cuidou da coleta e do armazenamento das células do bebê Luiz.
Biodente, realidade próxima
Na Universidade de Brasília (UnB), os esforços estão concentrados em descobrir como as células-tronco podem ser úteis nos tratamentos de doenças bucais. Uma equipe, composta por mais de uma dezena de profissionais, se debruça para padronizar a obtenção das células-tronco a partir da polpa dental e multiplicá-las. "Nós separamos as que têm características de células-tronco e diferentes proteínas fazem com que elas se transformem em tecido dental", simplifica o geneticista Márcio Poças, chefe do Departamento de Genética e Morfologia do Instituto de Ciências Biológicas da UnB e coordenador do projeto.
O estudo ainda está na fase laboratorial, in vitro. Segundo a cirurgiã-dentista Luciana Pereira, mestre em biologia molecular, o procedimento poderá proporcionar, por exemplo, a regeneração do dente sem implante. Seria o biodente, que já foi produzido em laboratórios ingleses. "Trabalhamos com células de origem conjuntiva, que podem se transformar em osso, cartilagem, músculo, tecido adiposo. Poderemos assim evitar tratamento de canal e regenerar a polpa com células-tronco", explica a dentista.
Esperança para doenças autoimunes
Além da eficiência do uso de CTs embrionárias nos transplantes de medula, outro mundo desbravado pelas pesquisas é a aplicação das células-tronco adultas, retiradas de diferentes partes do corpo, especialmente da medula óssea.
Um estudo realizado desde 2001 por pesquisadores da Faculdade de Medicina da USP-Ribeirão Preto mostrou que é possível tratar doenças autoimunes, como o diabetes do tipo 1, usando células-tronco provenientes da medula óssea do próprio paciente. Como a doença, por alguma razão desconhecida, se origina da autoagressão do sistema imunológico, a primeira etapa do tratamento foi destruir as células desse sistema por meio de altas doses de quimioterapia e de imunoterapia.
No fim, o sistema imune defeituoso foi substituído por um novo, sem características autoimunes. Para isso, foram injetadas células-tronco da medula óssea, capazes de reiniciar o sistema imune, como explicou o coordenador responsável pela pesquisa, Júlio César Voltarelli, coordenador da Unidade de Transplante de Medula Óssea do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto. "A primeira etapa do estudo experimental foi realizada em pacientes no estágio avançado da doença, já que o tratamento apresentava riscos por destruir a imunidade do corpo", explica Voltarelli. Hoje, um dos focos da pesquisa é acompanhar 25 pacientes com diabetes melito do tipo 1 em estágios mais precoces da doença.
No futuro, espera-se que o tratamento com células-tronco represente uma alternativa econômica para evitar que pacientes com doenças autoimunes graves, como lúpus e esclerose múltipla, tenham complicações importantes e sejam obrigados a usar medicamentos de alto custo pelo resto da vida.
Direto no coração
Os experimentos com o uso das células-mãe do próprio indivíduo também apontam perspectivas para melhora dos quadros de comprometimento cardíaco. Há quase 10 anos, o Hospital Pró-Cardíaco, no Rio de Janeiro, foi um dos idealizadores do tratamento de pacientes que sofriam com insuficiência cardíaca grave.
Os voluntários eram homens e mulheres, em média com mais de 50 anos. Para eles, a única solução de melhorar seria um transplante do órgão. Isso implicaria na espera incerta do doador e na possibilidade de rejeição do corpo, que poria fim às chances de vida do paciente. Com a terapia celular, eles receberam no músculo cardíaco uma injeção de células-tronco, retiradas da própria medula.
Feito isso, o próximo passo foi monitorar, durante um ano, toda e qualquer melhora do paciente. O que se constatou foi o aumento da sobrevida de pessoas com a saúde, antes, tão comprometida. O coração de todas apresentou melhor desempenho que antes. "Infelizmente, um dos pacientes faleceu no 11º mês da pesquisa por uma causa não cardíaca. O coração foi biopsiado e vimos que o tecido estava mais vascularizado, o que pode ser considerado um grande ganho", avalia a médica Suzana Alves, coordenadora de pesquisa do Centro de Estudos do Pró-Cardíaco.
Agora, os cientistas partem para novo desafio. A equipe médica do hospital controla pacientes que sofreram infarto agudo do miocárdio. Gente com saúde debilitada e com elevado risco de sofrer uma insuficiência cardíaca. Dessa vez, as células-tronco foram liberadas dentro da coronária. "Os vasos desses pacientes estavam muito entupidos. Depois do tratamento, fizemos ressonância, cateterismo e pudemos constatar, mais uma vez, a melhora da função cardíaca", avalia a médica. No entanto, Suzana esclarece que, apesar dos resultados positivos, para que a terapia seja incorporada aos procedimentos clínicos é preciso realizar mais testes e estudos. Mas ela é otimista. "Acredito que, no máximo daqui a cinco anos, doentes cardíacos poderão se beneficiar com o tratamento."
Por um futuro melhor
Quem convive com um mal limitante e sem cura não perde a esperança de que as estruturas que determinam a formação do organismo possam um dia proporcionar-lhes uma nova vida. Incansável, Carolina Sanchez, 37 anos, participou de todos os debates para a liberação das pesquisas com células-tronco no país, há pelo menos seis anos. Isso desde quando ainda se debatia no Congresso a aprovação da lei que determinava as regras dos estudos com células embrionárias.
Ela fez questão de escancarar seu problema, exibir suas dificuldades e deixar claro que sua única chance seria um tratamento futuro com células-tronco embrionárias. "Mesmo que eu não me beneficie disso, quem sabe outras pessoas no futuro poderão ter a cura para essa doença", diz a moça. Ela sofre de ataxia, um problema que afeta a coordenação motora e o equilíbrio do paciente, fazendo com que, aos poucos, ele perca o equilíbrio, os movimentos e a fala.
Mas não a garra. Os primeiros sintomas apareceram quando Carolina tinha 11 anos. Ela faz fonoaudiologia desde os 20 anos para não perder de vez a fala, que fica comprometida por falta de força da musculatura da face. Também faz fisioterapia, "para viver com mais qualidade". Os cuidados de uma enfermeira, a cadeira motorizada, o apoio dos amigos e da família lhe permitem trabalhar, comandar uma equipe, se divertir e levar uma vida o menos limitada possível. "Só sinto mesmo muita vontade de dançar", diz, com os olhos marejados.
Quem também se emociona é Tânia Fonteles, 36 anos, ao falar da última vez que sua filha lhe acenou. A menina tinha 1 ano e alguns meses de vida. Foi quando a atrofia muscular começou a dar sinais. O diagnóstico era de que Maria Fernanda só viveria até os dois anos de idade. Contrariando a estatística, a menina completa sete anos de vida. Ela não movimenta nenhum membro do corpo. Não come e não respira sem ajuda de aparelhos. É monitorada por enfermeiros o dia inteiro. Só sorri e pisca os olhos para se comunicar.
Tânia comemora cada mudança de ritmo de respiração ou tentativa de expressão da filha. É sinal de que ela está entendendo o que se passa a sua volta. Seu sonho é que Fernanda possa viver mais e melhor. Por isso sempre foi ativa nas discussões de pesquisa com células-tronco. Participa de debates, congressos que mostram como os estudos poderiam ajudar a menina. "Acho que não podemos desistir. Minha filha deu provas de que é guerreira", afirma Tânia.
Jovem sempre?
"Sou entusiasta da ideia de que o envelhecimento será evitável." A frase é de autoria do pesquisador de células-tronco Stevens Rehen, membro do Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias do Instituto de Ciências Biomédicas da Univesidade Federal do Rio de Janeiro (Lance-RJ). Uma previsão de assinatura renomada assim faz com que o futuro pareça algo, inclusive, assustador.
O que ele quer dizer, na verdade, é que a dedicação do mundo científico em entender o comportamento das células humanas pode oferecer informações preciosas, capazes de impedir a degeneração natural do organismo e os efeitos da doença. Uma das linhas de pesquisa do laboratório coordenado por Stevens é transformar células da pele em neurônios. Simplificando, as células-tronco da pele são reprogramadas a partir da ação de vírus e se transformam em células do cérebro.
O grande ganho disso, entre outras aplicações, é que tendo em mãos, literalmente, um neurônio de um paciente, é possível estudar quais as causas e como reagem os medicamentos contra as doenças do envelhecimento, como Alzheimer e Parkinson. "Para entender isso hoje, só se você fizesse uma biópsia do cérebro do paciente, o que se torna inviável. Com um neurônio produzido em laboratório, com as características genéticas de determinadas pessoas, você poderá testar medicamentos e avaliar resultados", diz Stevens. A partir daí, a expectativa é a cura ou o retardo dos males da idade, graças à terapia celular, que substituiria tecidos comprometidos por novos, criados a partir das células-tronco.
Na estética, a medicina regenerativa - que promete melhorar a qualidade de vida das pessoas ao longo dos anos %u2014 também busca meios de aliviar os danos provocados pelo tempo. O cirurgião plástico Ithamar Stocchero é um dos envolvidos em desvendar os benefícios que a biologia celular pode fazer pelo próprio corpo. Ele é um dos coordenadores de uma pesquisa que retira as células-tronco encontradas nos vasinhos da gordura descartada na lipoaspiração.
"Elas poderão ser usadas para restaurar volumes, regenerar tecidos, além de tratar sulcos e rugas", lista. "As pesquisas apontam que elas ainda serão capazes, inclusive, de regenerar uma mama", acrescenta o médico, que também é presidente da Abratron (Associação Brasileira de Engenharia de Tecidos e Estudos das Células Tronco), uma instituição criada em 2005 para debater e trocar experiências dos estudos sobre o tema com profissionais de todo o país.
Mas, por enquanto, são apenas perspectivas. Ithamar explica que eles ainda não identificaram a %u201Ctecla pare%u201D dessas células. %u201CVocê pode injetar CTs para aumentar a mama. O problema é fazê-las pararem de crescer.%u201D
Não só a cirurgia plástica se beneficia das descobertas nessa área. A dermatologia promete mudar a vida e a autoestima de muita gente com a aplicação das células-mãe. Um dos procedimentos é chamado de desdiferenciação, que consiste em transformar uma célula madura da pele em célula-tronco. O objetivo? Tratar problemas de calvície, regenerar pele queimada e curar doenças genéticas. "Isso permitiria, inclusive, criar bancos de pele que poderiam ser usados em tratamentos de rejuvenescimento", garante Omar Lupi, presidente da Sociedade Brasileira de Dermatologia.
O procedimento aparentemente é simples: retira-se células madura da bochecha e, por meio de substâncias específicas, elas se transformariam em células-tronco adultas. "Bastaria, então, localizar o gene alterado, manipulá-lo na célula-tronco e reimplantá-lo curado. No caso da calvície, o transplante de células-tronco presentes no bulbo capilar faz com que os fios nasçam onde já não existiam mais", esclarece o médico. Por enquanto, nenhum desses tratamentos pode ser feito em consultório, mas Omar acredita que estarão acessíveis nos próximos anos.
Dos problemas de locomoção aos oculares
Para pacientes que sofreram um acidente e tiveram os movimentos do corpo comprometidos, uma opção para sair da cadeira de rodas pode ser a terapia celular. O pesquisador Stevens Rehen explica que os primeiros testes em humanos para tratar lesões da medula usando células-tronco podem começar em breve nos Estados Unidos.
Possivelmente, os primeiros a receber as células para que elas se transformem em células do sistema nervoso e corrijam os danos na medula serão paraplégicos. A expectativa é que possam recuperar parte dos movimentos. "Mas ainda será preciso concluir todos os testes para saber se o procedimento não gera teratomas - tumores que podem aparecer em tecidos humanos gerados com células-tronco embrionárias", avalia. "O risco é não ter garantias de que as células irão se transformar exatamente naquilo desejado. Se sobrar alguma célula pluripotente, ela pode virar um câncer", acrescenta o cientista.
O desejo de que as pesquisas e os testes nessa área avancem é o que não deixa a historiadora Marivone Matos, 66 anos, desanimar. Há 19 anos, ela foi acometida por uma doença que danifica a mucosa do olho, provocando a cegueira. Ao longo do tempo, o problema só agravou. Veio o descolamento da retina em um olho e a atrofia do nervo óptico no outro.
Para reverter a situação, Marivone fez uma cirurgia em Barcelona. Depois se submeteu a um procedimento inovador nos Estados Unidos. Mas nada. Ela não conseguiu recuperar a visão e "ver os netos novamente", como sonha. Ao dizer isso, a historiadora chora. Ela deseja a todo custo que as células-tronco possam trazer sua cura. Por isso, está sempre informada dos andamentos das pesquisas.
No caso dos problemas de visão incuráveis com cirurgias e medicamentos, o oftalmologista Leôncio Queiroz Neto, do Instituto Penido Burnier, em São Paulo, diz que há técnicas bem avançadas em que se retiram células embrionárias da placenta. Elas conseguem se diferenciar e construir tecidos da superfície ocular. "Os estudos preliminares mostram que o procedimento recupera até 70% das lesões provocadas por queimaduras decorrentes de contato com produtos como sódio, cal e amônia", lista.
Para os que, a exemplo de Marivone, sofrem com doenças autoimunes, como a Stevens Johnson, que ataca tecidos dos olhos e pode provocar cicatrizes na córnea, a chance é de que as células-tronco possam restaurar danos na retina, reparar o nervo óptico e regenerar a córnea.
Saiba mais
# As células-tronco são capazes de se diferenciar nos mais variados tecidos do corpo humano. Elas podem ser programadas para desenvolver funções específicas, uma vez que se encontram em um estágio em que ainda não estão totalmente especializadas.
# Há diferentes tipos de células-tronco. As embrionárias, que são pluripotentes e têm a capacidade de se transformar em qualquer célula adulta, são encontradas no interior do embrião, entre 4 e 5 dias após a fecundação.
# Já as células-tronco adultas são encontradas em todos os tecidos do corpo. Pela facilidade de retirada, as mais comuns de serem usadas são as da medula óssea e do sangue do cordão umbilical. São chamadas multipotentes, capazes de se diferenciarem na maioria dos tecidos ou em uma célula idêntica.
# As primeiras células-tronco induzidas foram produzidas em 2007. Cientistas conseguiram fazer com que células da pele voltassem ao estágio de células-tronco.
# Em 2008, o Superior Tribunal Federal (STF) aprovou a continuidade das pesquisas com células-tronco embrionárias no país, obtidas de embriões humanos produzidos em fertilização
in vitro e não usados no respectivo procedimento.
Fonte: Com informações do site da Rede Nacional de Terapia Celular (www.rntc.org.br)
Entrevista
Doutora em microbiologia e professora do Departamento de Biologia Celular da Universidade de Brasília, Lenise Garcia esclarece algumas dúvidas comuns sobre o uso e a pesquisa das células-tronco.
Há quanto tempo se fala em uso das células-tronco como esperança de cura?
O primeiro uso foi há mais de 40 anos, com células-tronco de medula óssea para tratamento de leucemia e outras patologias sanguíneas. O uso em outras doenças vem sendo pesquisado há cerca de 20 anos.
Quais são os tratamentos já consolidados e com resultados comprovados?
Como tratamento consolidado, o transplante de medula, com o uso das células de medula óssea de doadores de cordão umbilical. No caso de outras doenças, há muitos experimentos em fase final de teste clínico. Isso significa que muitos pacientes já foram curados, ou existe melhora, mas se considera ainda em fase experimental. Listam-se as patologias cardíacas, acidente vascular cerebral, doenças degenerativas. Células do cordão umbilical têm dado bons resultados, substituindo as de medula. Mais de 70 doenças estão sendo pesquisadas com o teste clínico das células-tronco, chamadas "adultas" (em contraposição às embrionárias).
Quais as diferenças entre as diversas células-tronco presentes em nossos tecidos?
Temos células-tronco em todos os tecidos, por isso eles se regeneram. Costumo dizer que, se elas não existissem, seríamos cheios de buracos. São elas que atuam na permanente regeneração da nossa pele, do nosso sangue, que corrigem um osso quebrado ou um corte. Mas só recentemente desenvolvemos tecnologia para extraí-las, desenvolvê-las in vitro e usar para tratamentos específicos. As de medula e do cordão umbilical são as mais fáceis de obter. Sendo pluripotentes podem ser usadas em tratamentos diversos. Mas há casos que exigem mais especificidade, como as de retina, que já estão proporcionando tratamento de deficiências visuais.
Quais são as grandes promessas dos tratamentos com esses tipos de células?
Não podemos generalizar. Nem sempre há cura, muitas vezes apenas melhora. Doenças que envolvem degeneração celular são as que mais são objeto do tratamento. Também quando há grande perda celular, por exemplo, por acidentes.
Quais são os maiores impedimentos de começar testes e tratamentos com células-tronco em pacientes?
A dificuldade está em ter o controle sobre o crescimento celular. Esse é o maior problema técnico com as células-tronco embrionárias, que nos experimentos em camundongo ou outros animais muitas vezes levam à formação de tumores. Por isso, até hoje, não existem testes clínicos com células-tronco embrionárias. A pluripotência dessas células, muitas vezes apresentada como vantagem, pode ser também um problema, pois a célula pode se transformar em uma diferente da que necessitamos. Ninguém deseja um dente crescendo no cérebro. Todos os tratamentos existentes e testes clínicos são com células-tronco adultas. Outra vantagem da célula adulta é que ela pode, muitas vezes, ser extraída do próprio paciente, evitando problemas de rejeição.
Quais são as técnicas, hoje conhecidas e pesquisadas, para usar uma célula-mãe e transformá-la em outros tecidos?
As técnicas são complexas, mas em geral podemos dizer que se usam fatores de crescimento e diferenciação. Ainda conhecemos pouco os fatores que agem naturalmente ao longo de todo o nosso desenvolvimento. À medida que forem sendo descobertos, abrirão novas possibilidades.
Como você avalia o futuro do uso terapêutico das células-tronco?
Penso que as células-tronco adultas abrem inúmeras possibilidades. Elas são responsáveis pelas regenerações naturais do organismo e, quanto mais entendermos esse fenômeno, melhor poderemos amplificar o seu potencial. A grande promessa não está em ter "uma célula para tudo". Os antigos sonhavam com panaceias, o "remédio para qualquer doença", mas o desenvolvimento da farmácia e da medicina se deu com "um remédio para cada coisa", pois a especificidade é uma exigência da natureza e o efeito específico tem menos risco de provocar danos. Penso que a terapia celular seguirá os mesmos rumos, teremos uma gama muito diferenciada de tratamentos, a partir das diferentes células-tronco adultas.