Ciência e Saúde

Cientistas desvendam a cadeia molecular do veneno de abelha e criam antídoto que neutraliza a peçonha

O soro deve chegar aos hospitais brasileiros dentro de um ano

postado em 06/08/2010 07:00 / atualizado em 18/09/2020 16:36

Um século após a descoberta da especificidade dos soros antiofídicos pelo sanitarista Vital Brazil, que são responsáveis por evitar a morte de milhares de vítimas picadas por serpentes nos quatro cantos do planeta, o Brasil continua referência em imunologia. Cientistas brasileiros desenvolveram e produziram o primeiro soro contra veneno de abelhas do mundo. Depois dos testes em voluntários, o produto deve chegar aos hospitais em um ano.

O soro, desenvolvido a partir de uma parceria entre o Instituto Butantan, a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Estadual Paulista (Unesp), poderá salvar pacientes atacados por enxames. Testes feitos em laboratório provaram que o antídoto neutraliza 90% dos danos à saúde causados pelas ferroadas das abelhas africanizadas, espécie mais comum nas Américas. A novidade chegou em um momento importante.

Em todo o Brasil, os casos de ataques (acima de 50 picadas) e de feridos com risco de morte vêm crescendo e já preocupam o Ministério da Saúde. Dados revelam que em 2008 foram registradas 13 mortes decorrentes de acidentes com abelhas. Em 2009, o número saltou para 50. As serpentes, animais peçonhentos que mais matam, fizeram 106 vítimas no ano passado. Ao contrário do que se imagina, a maioria das investidas dos enxames ocorre na zona urbana. Em 63% dos casos notificados, a vítima é do sexo masculino, com idade que varia de 20 a 49 anos.

A bióloga Keity Souza Santos, responsável pela pesquisa, explica que cientistas de todo o mundo perseguiam o desenvolvimento do soro contra o veneno de abelhas há mais de uma década. Segundo ela, a complexidade da substância venenosa produzida pelos insetos voadores exigiu uma investigação detalhada da composição e do mecanismo de ação da peçonha. ;O veneno em si é conhecido há muito tempo. O desafio foi identificar todas as proteínas presentes no composto, uma mistura com mais de 100 componentes. A partir daí, foi possível trabalhar para conseguirmos um soro que neutralizasse o máximo de propriedades tóxicas;, explica Keity.

Primeiros lotes
O protocolo desenvolvido por Keity ; método usado para a obtenção do soro ; já está patenteado. Até agora foram produzidos 80 litros do medicamento. Os cientistas trabalham no terceiro lote do antídoto. Os resultados dos testes do produto serão enviados à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgão responsável por validar as provas em laboratório e autorizar o uso em seres humanos. Isto só ocorre depois de a agência testar três lotes do produto.

O processo de produção do soro antiveneno de abelhas é similar ao do antiofídico. Após a identificação das proteínas, o veneno é injetado em cavalos. Os animais desenvolvem anticorpos, que são as moléculas capazes de neutralizar a substância venenosa. ;Quando o teor de anticorpos atinge o nível desejado, retiramos o sangue do animal para a extração do plasma. O soro é obtido a partir da purificação e da concentração desse plasma;, define Keity.

As hemácias são devolvidas ao animal por meio da plasmaferese, técnica que reduz os efeitos colaterais provocados pela retirada do sangue e que também foi desenvolvida no Butantan. O antídoto é aplicado na veia do paciente. Cerca de 20 mililitros trazem ao corpo os anticorpos capazes de neutralizar o veneno.

Alto risco
Dependendo da idade e do peso do indivíduo, 30 microgramas de veneno são suficientes para colocar a vida em risco. Cada abelha injeta até dois microgramas da substância no corpo da vítima. Além da dor, se a pessoa não for alérgica, uma ferroada não causará mal algum ao organismo. ;O soro é destinado apenas a indivíduos atacados por um enxame. Nesse caso, a quantidade de veneno é suficiente para lesar rins, fígado e coração, podendo causar a falência múltipla dos órgãos. Atualmente, os acidentados ainda são tratados com drogas e terapias que variam de analgésicos a hemodiálise;, acrescenta a pesquisadora.

Sobrevivente vira produtora de mel

A aposentada Francisca Lizete Paula, 73 anos, foi atacada por um enxame de cerca de 5 mil abelhas. O acidente ocorreu em 1970, mas até hoje é lembrado por conta dos danos que causou. ;Fiquei completamente deformada e em coma por 17 dias. Um dos rins ficou paralisado e fui desenganada pelos médicos que me socorreram. O único que acreditou na mais remota possibilidade de reação me confessou, anos mais tarde, que considera o meu caso um milagre;, relata.

Francisca explica que o ataque foi muito rápido e que desmaiou no momento da investida do enxame. ;Estava colhendo mudas de plantas na área do Zoológico de Brasília. Meu marido conta que foi necessário colocar fogo em pneus para o enxame se dispersar e eu ser resgatada. Perdi sangue por vários dias. Muitas transfusões foram necessárias para me salvar;, lembra Francisca. Embora grave, o acidente não deixou traumas. ;Hoje, sou apicultora e ainda me encanto com a organização desses animais. As abelhas produzem alimentos importantes para nossa saúde. O ataque, para elas, é uma forma de defesa;, avalia a produtora de mel que mora em uma chácara no Guará.

Os pesquisadores observam que as abelhas africanizadas não gostam de cheiros e cores fortes e que quando um integrante do enxame se sente acuado, alerta os outros com uma espécie de odor característico. Assim, o grupo parte para o ataque.

Tentativa certeira
O grupo que desenvolveu o antídoto já havia tentado o resultado positivo de hoje anteriormente. ;Mas não conseguimos boa capacidade de neutralização do veneno. Novos métodos de extração permitiram a obtenção da quantidade de peçonha suficiente para essa nova pesquisa. Hoje, os testes em laboratório e em animais provaram que o antídoto é muito eficaz. Agora, aguardaremos a aprovação da Anvisa para formar uma rede e disponibilizar o soro para hospitais de regiões que sofrem mais com os ataques; (veja arte), adianta o diretor do Serviço de Imunologia do Instituto Butantan, José Roberto Marcelino.

Segundo ele, as abelhas africanizadas são muito produtivas e a agressividade depende de uma série de fatores, que incluem a idade da operária, a temperatura, a umidade e a movimentação perto da colmeia.

A urbanização desenfreada tem contribuído para aumentar o número de ataques. O homem está invadindo o habitat desses insetos e por isso os acidentes se tornaram comuns em centros urbanos. ;O envenenamento pode provocar manchas no corpo, inchaço e até choque anafilático. Quanto mais rápido for o atendimento, melhor para a vítima. O soro será a solução rápida para esses casos;, diz Marcelino.

 

 

Ouça trechos da entrevista com a pesquisadora Keity Souza Santos

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