Ciência e Saúde

Morcegos ajudam em pesquisa para decifrar os vírus que sofrem mutações rápidas e migram de uma espécie para outra

Paloma Oliveto
postado em 06/08/2010 07:00
Eles são feios, assustam e transmitem doenças infecciosas. Justamente graças a essa última característica, porém, os morcegos estão ajudando a ciência a entender melhor os vírus de RNA,, aqueles que sofrem mutações muito rápidas e são responsáveis por desencadear pandemias ao migrarem entre diferentes espécies, como o ebola, o da gripe suína e o H5N1, causador da gripe aviária. Outra doença infecciosa provocada por um vírus de RNA (1) é a raiva. Como os micro-organismos que causam o mal costumam se hospedar em morcegos, um grupo de cientistas americanos escolheu esse mamífero alado como objeto de estudo.

Daniel Streicker no laboratório: genes de 372 vírus da raiva encontrados em morcegos foram sequenciados, para determinar as taxas de infecçãoDe acordo com a pesquisa, publicada na edição de ontem da revista especializada Science, somente nos Estados Unidos 2 mil morcegos portadores de raiva são coletados anualmente, depois de humanos ou animais domésticos serem expostos a eles. No Brasil, onde existem cerca de 150 espécies, a Secretaria Nacional de Vigilância em Saúde registrou 88 casos de morcegos infectados até junho deste ano. Em 2009, foram 181 casos ; um deles no Distrito Federal.

O vírus da raiva entra no organismo, multiplica-se, atinge o sistema nervoso periférico e, depois, ataca o sistema nervoso central. De lá, dissemina-se para vários órgãos. É transmitido aos humanos por animais e, até hoje, só se conhecem oito casos em todo o mundo em que um homem foi infectado por outro, mas essas ocorrências referem-se a pessoas que receberam transplante de órgãos doados por um indivíduo que morreu da doença. Bastante grave, a raiva provoca, entre outros sintomas, febre alta, dor de cabeça, náusea, irritabilidade, delírios, convulsões e, por fim, as paralisias cardiorrespiratórias que levam à morte.

[FOTO2]A pesquisa publicada na Science, conduzida pelo estudante de pós-doutorado da Universidade da Geórgia Daniel G. Streicker, concentrou-se na raiva, mas seus resultados não se aplicam apenas a essa doença. De acordo com Streicker, eles vão ajudar a decifrar o comportamento de outros males transmitidos por vírus que migram de uma espécie para outra, já que a atuação desse tipo de micro-organismo infeccioso é semelhante em todos os casos. ;A raiva foi escolhida por ser um modelo ideal para o que pretendíamos. Ela ocorre em todas as regiões, afeta diferentes espécies hospedeiras e é conhecida por sofrer frequentes mutações;, explica.

Sequenciamento
Para determinar a quantidade de indivíduos ou animais que podem ser infectados por um único agente transmissor, a equipe de Streicker usou um banco de dados sobre 23 espécies de morcegos existentes nos Estados Unidos, com informações dos últimos 10 anos. Eles sequenciaram os genes de 372 vírus da raiva encontrados nesses mamíferos. As análises revelaram que apenas um morcego contaminado costuma transmitir a doença para até dois indivíduos de diferentes espécies.

;É importante destacar que, para chegar a essa informação, lançamos mão de uma ferramenta muito barata e acessível, que é o sequenciamento molecular;, enfatiza o pesquisador. De acordo com ele, a metodologia poderá ser aplicada para quantificar as taxas de infecção de espécies hospedeiras em relação a outros patógenos encontrados na vida selvagem.

Além de verificar o potencial de transmissão viral, os pesquisadores procuraram entender quais são os fatores que permitem que um micro-organismo hospedado em determinada espécie consiga migrar para outra completamente diferente e desencadear uma doença. Eles fizeram uma importante descoberta: quanto maior a diferença genética entre as espécies, menor a possibilidade de haver a infecção, ainda que os vírus de RNA tenham capacidade de se transformar rapidamente.

;É a similaridade inata entre espécies que favorece a habilidade do vírus de infectar novos hospedeiros;, explica Gary McCracken, professor da Universidade do Tennessee, que também assina o artigo. Para Daniel Streicker, essa informação será importante para futuras abordagens terapêuticas. ;O conhecimento básico que adquirimos com essa pesquisa será a chave para o desenvolvimento de novas intervenções estratégicas para o combate de doenças que podem migrar da vida selvagem para os humanos;, diz.

O estudo, custeado pela National Science Foundation, não acabou. Com o apoio do Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos, a Universidade de Michigan e os ministérios peruanos da Saúde e da Agricultura, a equipe de Streicker vai investigar como as atividades humanas afetam a transmissão do vírus da raiva em morcegos hematófagos (que se alimentam de sangue), no Peru.

1 - Parasitas mutantes
Os vírus podem ser considerados ;parasitas genéticos;, pois se infiltram no DNA do hospedeiro e podem modificá-lo. Existem vírus de DNA e RNA, sendo que os primeiros têm como alvo uma célula específica de determinada espécie. Já os vírus de RNA se adaptam a diversos tipos de hospedeiro, o que os torna extremamente instáveis. Eles têm amplo trânsito entre diferentes espécies: é o caso, por exemplo, do H5N1 ; apesar de se hospedar em aves, ele pode infectar diversos mamíferos.

Três perguntas para

Daniel G. Streicker Estudante de pós-doutorado da Universidade da Geórgia
O estudo é sobre o mecanismo de transmissão do vírus da raiva por morcegos.


Qual é a importância dos resultados em relação a outras formas de vírus?
De uma maneira mais abrangente, nosso estudo mostra que os dados obtidos pelo sequenciamento das moléculas, um exame absolutamente comum e acessível, podem ser usados tanto para mostrar a taxa de transmissão (de um vírus) de uma espécie para a outra na natureza quanto para entender as origens desses raros eventos, que são as transmissões nas quais o vírus passa para a nova espécie, instalando-se no genoma do hospedeiro. Esse avanço tecnológico é significativo para a compreensão da maioria dos agentes patogênicos. Alguns exemplos são a Sars (conhecida no Brasil como gripe aviária) ou o ebola em morcegos, os lentivírus nos primatas ou os morbilivírus nos carnívoros. A metodologia que usamos pode ser generalizada para qualquer patógeno.

Por que o senhor escolheu particularmente os morcegos para fazer esse estudo?
Para investigar como ocorre a transmissão da raiva, você não pode esperar um modelo melhor do que os morcegos. Primeiro, porque o vírus do morcego tende a se associar com hospedeiros simples, permitindo a fácil identificação de indivíduos infectados por uma transmissão entre diferentes espécies. Em segundo lugar, há uma tremenda diversidade ecológica e evolutiva nos morcegos, o que nos permite testar questões importantes sobre a origem das enfermidades virais. Finalmente, como a raiva transmitida pelos morcegos é uma questão importante para a saúde pública, eles são bastante estudados em laboratórios, todos os anos. Para nós, isso significa que amostras de variedades das espécies estão espalhadas pelo mundo e basta um telefonema para chegarmos até elas.

As pessoas têm muito medo de doenças transmitidas por morcegos. O senhor acredita que esse temor possa diminuir, já que a pesquisa mostra que é mais provável que o animal contamine uma espécie semelhante a ele do que um humano?
No sentido de que eles têm vírus que às vezes são transmitidos para os homens, os morcegos estão na mesma situação que várias outras espécies. Se eles associam-se mais com doenças emergentes ou infecções mais virulentas para humanos ainda não se sabe. São necessárias abordagens multidisciplinares envolvendo o estudo de doenças ecológicas, a genética, a imunologia e a análise macro dos bancos de dados sobre as infecções para entender melhor a relação entre eles e a saúde humana.

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