;Comecei a ficar cansada de tudo o que estava fazendo e resolvi ir a um bingo que havia sido aberto próximo à minha casa. Como estava tentando dar um novo sentido à minha vida e com isso me afastar das pessoas e dos lugares que andava frequentando, o bingo era o meu destino todos os dias após sair do trabalho. Sentia que ali era um lugar íntegro, com pessoas de um bom nível, com seguranças de terno para me receber diante de um tapete vermelho e com atendentes sempre muito solícitas, que me faziam sentir importante.; É assim que a administradora de empresas Fátima*, 35 anos, descreve o local onde passava a maior parte de seus dias. Jogar, que começou como um simples divertimento, acabou dominando a vida dela, carregando consigo dívidas e imenso sofrimento.
Ela é uma dentre os 4 milhões de brasileiros ; 2,3% da população do país ; que mantêm algum tipo de relação problemática com o jogo. Segundo um levantamento feito pelo Laboratório do Jogo Patológico do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP) e divulgado em junho deste ano, 43,5% deles (cerca de 1,7 milhão de pessoas) já chegaram ao estágio da compulsão ; colocando o jogo como o terceiro maior objeto de compulsão entre os brasileiros, atrás apenas do álcool e do cigarro.
Além do trabalho, Fátima dedicava-se integralmente ao jogo. ;Minha mãe cuidava da minha filha, então só precisava trabalhar e ir para o bingo. Mesmo só jogando nas cartelas, o jogo começou a me trazer problemas financeiros;, conta. Foi aí que ela começou a perceber que o divertimento havia se tornado uma compulsão, mas, como todos os vícios, deixá-lo é sempre mais difícil que começá-lo. ;Comecei a montar estratégias para parar de jogar ou controlar o meu jogo, como jogar só três vezes na semana, ir para Aparecida do Norte e fazer promessa para não jogar mais ou gastar todo o dia que eu tinha para jogar fazendo coisas para a minha filha;, relembra. Nada disso surtiu efeito.
;Cada vez que tentava controlar o meu modo de jogar, sofria mais, ao perceber que só fracassava. Houve muito sofrimento, muitas dívidas, muitos deslizes. Pegava o dinheiro da minha família escondido, abandonei a minha filha. Me tornei egoísta, me preocupando somente com os meus interesses e sem paciência com a vida do meu próximo. Eu achava que eles não tinham problemas, somente eu os tinha;, relembra a administradora. Em 2003, depois de diversas tentativas, ela conheceu os Jogadores Anônimos (JA), irmandade semelhante aos Alcóolicos Anônimos (AA), na qual pessoas que têm problemas com jogos se reúnem.
No JA, Fátima encontrou pessoas como o encarregado de recursos humanos Paulo*, 49 anos, que começou a jogar aos 15. ;Nesse meio tempo, a única coisa que mudou foram as modalidades dos jogos: sinuca, carteado, bicho, videopôquer, loterias, caça-níqueis e, por último, bingo;, conta. ;Minha vida era muito vazia, não me interessava por nada, nem espiritualmente nem materialmente, pois estava sempre voltado para as apostas. Estava marginalizado perante a sociedade e sem nenhuma identidade;, relembra o jogador compulsivo, que há nove anos se mantém longe do vício.
Assim como Fátima, Paulo também precisou chegar ao fundo do poço para perceber que precisava de ajuda. ;Eu não aguentava mais. Estava totalmente sozinho, desempregado, separado de minha esposa e com pensamentos de suicídio;, relembra. Ao procurar ajuda, o primeiro passo para a cura foi reconhecer o problema. ;Chegando lá, foi preciso admitir que eu era impotente perante a primeira aposta. Até hoje frequento o JA, em reuniões semanais com outras pessoas que têm os mesmos problemas;, afirma.
Limite
Admitir o vício, além do primeiro, é o mais difícil passo no processo de cura. Para a terapeuta familiar pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Marina Vasconcellos, o limite entre a diversão e a compulsão está na capacidade de cada um controlar o desejo. ;Essas pessoas normalmente não conseguem parar. Elas começam a jogar e, quando perdem, querem recuperar o prejuízo; quando ganham, se empolgam e não querem parar mais;, explica. ;Há pessoas que passam vários dias e noites seguidas jogando sem parar e, quando se questiona o excesso, normalmente dizem que têm total controle e que quando querem parar, conseguem, o que não é verdade;, completa.
Para ela, a participação de outras pessoas na busca pelo controle do problema é essencial. ;Como a pessoa não aceita logo de cara que precisa de tratamento, é importante procurar alguém que seja de confiança do compulsivo, explicar a situação e pedir que ele convença-o de que precisa de ajuda;, aponta a psicóloga. ;Outro ponto importante é oferecer informação. Buscar na internet dados sobre o que é o jogo compulsivo e sobre formas de tratamento pode ajudar a pessoa a romper a barreira do preconceito, o que muitas vezes a impede de procurar ajuda;, conta Marina.
Ela aponta que essa falta de conhecimento sobre o assunto, muitas vezes tratado como tabu, faz com que muita gente não procure tratamento. ;Muitas vezes, o paciente se sente culpado, tem vergonha do problema, e por isso não admite. Cercá-lo de informações de que isso é uma doença e não um bicho de sete cabeças pode ajudar muito;, completa.
Na juventude
Se engana quem pensa que apenas os jogos tradicionais, como o baralho e o bingo, são problemáticos. Os jogos eletrônicos, como os videogames e os jogos on-line, vêm se transformando em uma verdadeira epidemia mundial, especialmente entre os mais jovens. Tanto que, no mês passado, foi inaugurada na Inglaterra a primeira clínica para dependentes de jogos dedicada especialmente para o público entre 15 e 18 anos. No Brasil, ainda não existem iniciativas semelhantes, mas casos de abusos de jogos entre os mais jovens são cada vez mais recorrentes.
O estudante de engenharia da computação Victor Canato, 18 anos, conhece os dois lados que envolvem o mundo dos jogos. Na adolescência, desenvolveu uma relação não muito saudável com os games. ;Eu gostava dos jogos on-line, nos quais é possível interagir com pessoas de todo o mundo. Era bem legal, só que com o tempo eu passei a deixar outras coisas para me dedicar somente a isso;, relembra o estudante da UnB. ;Eu não saía mais com meus amigos e minhas notas na escola começaram a cair. Eu passei a viver em função daquilo;, relembra o jovem.
Para contornar o problema, ele decidiu desinstalar todos os jogos e deletar sua conta dos sistemas. ;Com isso, sempre que eu pensava em voltar a jogar ficava desanimado, pois me lembrava que teria que começar do zero;, conta. ;Essa foi a forma que eu encontrei para resolver o problema, e com o tempo eu pude voltar a jogar, agora só como diversão;, completa Victor.
Para ele, os jogos agora servem para outra coisa. ;Hoje conheço pessoas, me divirto, me relaciono com os meus amigos;, avalia. ;Tenho uma pequena cota para gastar com isso, que nunca ultrapasso, pouca coisa, algo como R$ 20. Também prefiro jogar apenas com meus amigos, exatamente para manter esse caráter de diversão, e não aquela coisa competitiva que muitas pessoas têm;, aponta como receita pessoal para não se ver viciado novamente.
Para a psicóloga Marina Vasconcellos, quem já tem um histórico pessoal ou familiar com o problema deve redobrar a atenção. ;Pesquisas mostram que todos os tipos de compulsão em geral têm um componente genético relacionado. Assim, quem tem um familiar nessa situação deve tomar mais cuidados;, afirma. ;Não necessariamente ele vai se viciar, mas tem uma predisposição maior para isso.;
Nomes fictícios a pedido dos entrevistados
Você é um jogador compulsivo?
Responda às 20 perguntas abaixo. Se as respostas forem positivas em pelo menos 7 delas, talvez seja hora de procurar ajuda.
- Você já perdeu horas de trabalho ou da escola devido ao jogo?
- Alguma vez o jogo já causou infelicidade em sua vida familiar?
- O jogo afetou a sua reputação?
- Você já sentiu remorso após jogar?
- Alguma vez você já jogou para obter dinheiro para pagar dívidas ou então resolver dificuldades financeiras?
- O jogo causou uma diminuição na sua ambição ou eficiência?
- Após ter perdido, você se sentiu como se necessitasse voltar o mais cedo possível e recuperar as suas perdas?
- Após um ganho você sentiu uma forte vontade de voltar e ganhar mais?
- Você geralmente jogava até que seu último centavo acabasse?
- Você já pediu dinheiro emprestado para financiar seu jogo?
- Alguma vez você já vendeu alguma coisa para financiar o jogo?
- Você relutava em usar o ;dinheiro de jogo; para as despesas normais?
- O jogo o tornou descuidado com o seu bem-estar e o de sua família?
- Alguma vez você já jogou por mais tempo do que planejava?
- Alguma vez você já jogou para fugir das preocupações ou dos problemas?
- Alguma vez você já cometeu, ou pensou em cometer, um ato ilegal para financiar o jogo?
- O jogo fez com que você tivesse dificuldades para dormir?
- As discussões, desapontamentos ou frustrações fizeram com que você tivesse vontade de jogar?
- Alguma vez você já teve vontade de celebrar alguma boa sorte com algumas horas de jogo?
- Alguma vez você já pensou em se autodestruir como resultado de seu jogo?
Serviço
Jogadores Anônimos
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