Em 2009, o Distrito Federal notificou nove casos de esquistossomose ao Ministério da Saúde. Os doentes foram atendidos na capital do país, mas não contraíram o parasita que provoca a doença no DF. A contaminação ocorreu em regiões endêmicas do interior de Minas Gerais, da Bahia, de Alagoas e de outros estados que ainda sofrem com as mazelas decorrentes da falta de saneamento básico. A dona de casa Consuelo Lisboa, 73 anos, não sabe ao certo quando foi infectada pelo verme, o que a fez sair de Santa Maria da Vitória, extremo-oeste baiano, para buscar socorro em Brasília. ;Passei mal em 2007. Até sofrer uma forte hemorragia, a doença não apresentou sintomas. Não imaginava ter em meu organismo um verme desencadeando tantos estragos. Percebi os danos somente quando comecei a perder sangue pelas fezes e pela boca;, relata. Ao diagnóstico da esquistossomose seguiu-se a constatação de que o baço estava inchado e o fígado atrofiado, consequências da ação do helminto. ;Com os medicamentos, consegui me livrar do parasita, mas as sequelas da falta de tratamento ficaram em meu corpo;, lamenta.
Um estudo realizado ao longo dos últimos 25 anos por uma pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz poderá colocar o Brasil em posição inédita na área científica. A primeira vacina contra a esquistossomose da história está a um passo de ser testada clinicamente no país. Ela representa, para as pessoas que vivem em áreas endêmicas como dona Consuelo, o controle efetivo desse mal, que ainda faz vítimas em quase todo o planeta. Conhecida popularmente como barriga d;água, a doença é provocada pelo Schistossoma mansoni, verme cujo principal hospedeiro é o homem. Se tudo transcorrer como o desejado pelo grupo envolvido na pesquisa coordenada pela médica Miriam Tendler, em pouco tempo a população vulnerável ao parasita poderá ser imunizada.
A esquistossomose atinge 200 milhões de adultos e crianças em 74 países, causando a morte de pelo menos 200 mil pessoas por ano. Como médica, Miriam sabia dos grandes percalços provocados pela doença em nações africanas e no próprio Brasil, fato que a levou a pesquisar uma solução efetiva, capaz de reduzir esses números e melhorar a qualidade de vida dos cidadãos que vivem à margem do progresso. Era claro, para ela, que somente uma vacina protegeria os cidadãos expostos ao Schistossoma. ;O passo fundamental para o desenvolvimento desse produto foi a descoberta da proteína Sm14, antígeno presente no próprio parasita. Ela é a base molecular da vacina, porque tem uma sequência de aminoácidos que se liga a lipídeos. Os vermes não conseguem sintetizá-los, embora necessitem da gordura do hospedeiro como fonte de energia;, explica Miriam.
Ao longo do trabalho, a cientista descobriu também que a Sm14 era capaz de produzir anticorpos contra o parasita causador da fasciolose hepática ; doença que atinge 300 milhões de cabeças de bovinos e ovinos no mundo. ;Nos dois helmintos, a molécula adota a mesma estrutura tridimensional. Percebemos, então, que a vacina seria multivalente, fato que despertou interesse industrial e uma corrida, em outros países, para novas descobertas sobre a molécula;, acrescenta.
Tendler iniciou os estudos para a vacina em meados de 1975, mas a fase molecular do projeto ; o isolamento da Sm14 ; ocorreu somente no início da década de 1990. Todas as nações desenvolvidas trabalhavam com biologia molecular. O Brasil, no entanto, nem contava com laboratórios nessa área. Miriam imaginou que seria o fim da linha para o trabalho. ;Fui convidada, porém, para fazer um pós-doutorado nos Estados Unidos e lá consegui clonar a Sm14, proteína jamais isolada anteriormente, embora presente na maioria dos vermes;, conta.
A partir daí, surgiram parcerias importantes. Entre elas, a do Instituto de Física da Universidade Federal de São Carlos, responsável pela modelagem molecular da proteína. ;Ao longo do trabalho, fomos registrando as patentes. Nossa vacina será produzida com a técnica do DNA recombinante, que introduz no organismo apenas uma molécula, garantindo maior segurança, controle e produção em larga escala. Em meados de 2000, fizemos estudos que comprovaram a eficácia do antídoto em bovinos e ovinos;, revela.
Impacto enorme
A esquistossomose é a segunda doença parasitária mais prevalente no mundo, perdendo apenas para a malária. O mal é remediado com antivermífugos, mas, como as pessoas tratadas continuam nas áreas infestadas, a reinfecção é recorrente. Atualmente, 600 milhões de indivíduos vivem em áreas contaminadas pelas larvas do verme. O continente africano abriga 80% deles. No Brasil, a contaminação, antes concentrada no Nordeste e no Centro-Oeste, está em expansão em outras regiões. A fascilose atinge o gado na Europa, nos Estados Unidos, na Nova Zelândia e nas américas do Sul e Central, gerando uma perda econômica de US$ 3 bilhões por ano, com impacto na indústria de alimentos. As drogas disponíveis não interrompem o ciclo de nenhum dos dois parasitas que desencadeiam as doenças.
Recentemente, a Ourofino Agronegócios, empresa de produtos veterinários com capital 100% nacional, adquiriu a licença para explorar a tecnologia desenvolvida na Fiocruz e fabricar as duas vacinas. A empresa se interessou primeiramente pela versão veterinária, que acabou impulsionando o projeto, porque na Europa já existe grande resistência em relação ao gado que toma muitos medicamentos para se defender dos parasitas. ;De nada adianta tantos anos de esforço se as pesquisas permanecerem dentro do laboratório. Para chegar à população alvo do parasita, precisamos de parceria industrial;, defende Miriam.
Testes preliminares provaram uma eficácia entre 60% e 90% do antídoto desenvolvido no trabalho da médica. O médico veterinário e diretor de pesquisa, desenvolvimento e inovação da Ouro Fino, Carlos Henrique Henrique, explica que a empresa aguarda a aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para testar a versão veterinária no campo. A vacina contra a esquistossomose ainda passará por testes clínicos. ;Hoje, temos a tecnologia para produção das duas. O antídoto contra a fascilose será testado no pasto assim que recebermos o aval da agência. Acreditamos que dentro de dois anos ele estará no mercado. Estamos abertos a parcerias para finalizar o produto destinado a controlar a esquistossomose. Esperamos que, em cinco anos, a população possa ser beneficiada com a vacina contra a doença;, adianta.