postado em 12/09/2010 08:00
; Max Milliano MeloSem caminhões, energia elétrica, muito menos cimento e britadeiras. Assim são feitas as obras do Guédelon, castelo que está sendo construído desde 1997 na comunidade francesa de Treigny, com técnicas e materiais idênticos aos que eram utilizados no século 13, em plena a Idade Média. A ideia é entender na prática como funcionavam os canteiros de obras e os métodos de engenharia da época, além de desenvolver o turismo e incentivar, principalmente nas crianças, o interesse pelo estudo do período medieval. A aventura tem um preço alto: depois de 13 anos de construção, a equipe envolvida ainda terá de trabalhar pelo menos mais 11 até concluir a empreitada.
Em entrevista ao Correio, Sarah Preston, uma das guias do castelo, conta que o projeto ajuda a entender como funcionavam algumas das técnicas de construção que hoje só se conhece na teoria. ;Um dos objetivos importantes do projeto é lançar luz sobre os mistérios dos mestres medievais. A comissão científica ; composta por arqueólogos, historiadores de arte e especialistas em castelos ; trabalha no local e precisa aprovar os planos estabelecidos pelo nosso mestre pedreiro, Florian Renucci;, conta.
Tudo que é utilizado na construção é o mais próximo possível do que era usado cerca de 800 anos atrás. ;A escolha do local, por exemplo, foi feita por se tratar de uma região que ofereceu a maior parte das matérias-primas necessárias no processo de construção: arenito, madeira, argila e água;, explica Sarah. ;Na Idade Média, o transporte para longas distâncias era caro, difícil e perigoso. Assim, a existência desses materiais também influenciava na localização das construções;, compara.
Todos os tijolos que comporão o complexo de cinco torres e uma pequena vila dentro da fortaleza de 2,5 mil metros quadrados são entalhados em pedra à mão. Para erguer os que ficarão no alto, nada de guindastes modernos. Para isso é utilizada uma engenhoca medieval em que um operário caminha dentro de uma roda, o que gera força suficiente para levantar toneladas. As telhas, de argila, precisam ser moldadas uma a uma e cozidas em um forno localizado ali mesmo, no canteiro de obras.
A argamassa que une os tijolos de pedra foi um dos principais entraves encontrados pelos pesquisadores. Eles levaram meses para determinar a composição exata da cal e areia utilizada na época. Para tornar a experiência ainda mais real, os construtores determinaram um ano que simbolizaria o início da obra. ;A fim de evitar anacronismos desnecessários, a construção do castelo foi colocada dentro de um contexto histórico específico: a data de início foi tomada como sendo o ano de 1229. Hoje, em Guédelon, o ano é 1241;, explica Sarah.
O projeto foi inicialmente financiado por um consórcio de empresas privadas e estatais, além de receber apoio do governo francês e da União Europeia. Desde 2000, no entanto, os recursos vêm somente da venda de ingressos. Só no ano passado, mais de 340 mil pessoas visitaram o castelo em construção.
O arquiteto e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Francisco Borges Filho, que fez seu doutorado sobre arquitetura medieval, explica que, ao contrário do que muita gente imagina, os canteiros de obras do período eram extremamente organizados. ;Todas as funções eram bem definidas. Dos aprendizes aos mestres de obras, todos executavam um trabalho especializado. Existiam projetos muito bem definidos, que funcionavam de maneira extremamente planejada;, conta o professor. ;Isso era necessário até porque as construções chegavam a demorar 300 anos para ficar prontas. Portanto, vários mestres se alternavam na condução da obra;, completa.
Ele explica também que a tecnologia medieval era tratada como confidencial. ;As fórmulas de qual mistura faria a melhor argamassa ou os cálculos para dar mais estabilidade a uma construção eram um segredo muito bem guardado. Cada corporação de ofício tinha seu próprio sistema de medidas, suas próprias ferramentas e maneiras de otimizar o tempo e os recursos;, explica Borges Filho. ;Isso, muitas vezes, criava problemas, como nos telhados, que constantemente eram feitos de madeira. Além de ter causado a devastação de boa parte das florestas da Europa, isso tornava as construções extremamente suscetíveis a incêndios.;
Reprodução imprecisa
A professora de história medieval da Universidade de Brasília (UnB) Maria Filomena Coelho explica que compreender métodos de construção pode ser uma forma de conhecer melhor um dos aspectos mais importantes da cultura medieval. ;Os castelos ou fortalezas na Idade Média foram muito importantes e numerosos. Esse tipo de construção permitia a defesa militar de um território, podia servir como marco fronteiriço entre regiões em disputa, além de representar um sinal de identidade para a população e prestígio social para os senhores;, conta. ;Do ponto de vista econômico, por exemplo, muitas feiras e mercados acabaram se estabelecendo ao abrigo dos castelos, o que contribuiu para a dinamização da vida urbana;, completa a especialista.
Ela lembra, no entanto, que projetos como esse podem ser uma grande aventura, mas exigem cuidados. ;É sempre bom advertir sobre os perigos de se pretender reconstruir uma situação do passado no presente. Por mais que se tentem reproduzir aquelas condições, em Guédelon há normas de segurança do trabalho, por exemplo, que seriam consideradas bizarras na Idade Média;, ressalta a professora da UnB. ;Tais experiências do tipo ;museu vivo;, embora interessantes, devem deixar-nos alertas para o perigo de estetizarmos o passado;, pondera.
Para Maria Filomena, do ponto de vista histórico, a experiência não permite conhecer exatamente como era um canteiro de obras medieval. ;Afinal, ninguém iria visitar o castelo Guédelon se o ambiente fosse insalubre e seus trabalhadores tivessem aparência desagradável, estivessem infestados de piolhos e sem dentes. Essas iniciativas devem propiciar uma reflexão complexa sobre o passado, que vá além da satisfação de uma curiosidade;, completa a pesquisadora.