Nos últimos 10 anos, a raiva humana matou pelo menos 574 pessoas no Brasil. Infecciosa, aguda e mortal em praticamente 100% dos casos, a doença é provocada por um vírus que atinge o sistema nervoso central e se alastra para vários órgãos. O mal é transmitido pela saliva de cachorros, gatos, morcegos, raposas e outros mamíferos silvestres infectados por meio de mordedura, arranhadura e lambedura de mucosas. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) revelam que as diversas variantes desse vírus matam 55 mil pessoas a cada ano em todo o mundo. Relatos históricos dão conta que a mazela afeta a humanidade desde a Antiguidade. Pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) acabam de dar um passo importante para entender melhor a evolução desse agente infeccioso ao longo do tempo. Um estudo conduzido nos últimos três anos possibilitou o sequenciamento genético da variante do vírus mantida pela espécie do morcego Desmodus rotundus, responsável pelo último surto em humanos ocorrido no país, em 2005.
Os vírus, assim como os seres humanos, também apresentam diferenças entre si. As modificações surgem a partir de mutações no material genético no decorrer dos anos. A bióloga Angélica Cristine de Almeida Campos, pesquisadora da USP que se dedicou ao sequenciamento, explica que, assim como ocorre com os homens, toda a informação genética dos agentes infecciosos estão no RNA ou DNA. "O vírus sequenciado contempla apenas moléculas de RNA e, ao contrário do DNA, que conta com uma enzima que corrige erros na hora da replicação do vírus, é altamente instável e suscetível a mudanças, fato que também dificulta a pesquisa com a molécula", especifica. Para possibilitar o sequenciamento, foi desenvolvida uma técnica que permitiu a obtenção de um molde do vírus na forma de DNA. Ela permitiu a amplificação do material genético e a primeira codificação completa desse pequeno ser que provoca uma doença tão grave e temida em pelo menos 150 países.
O Desmodus rotundus é o morcego mais bem adaptado à invasão de seu habitat pelo homem. A espécie é encontrada na região geográfica que vai do meio-norte do México ao norte da Argentina, com exceção da Cordilheira dos Andes. Alguns estudos apontam que a variante do vírus mantida por ele é relevante do ponto de vista econômico e de saúde pública, pois atinge rebanhos, animais domésticos e humanos. Ao falar sobre a importância do sequenciamento genético feito por sua equipe, a pesquisadora científica do Instituto Pasteur e coordenadora do Núcleo de Pesquisas em Raiva do Laboratório de Virologia Clínica e Molecular do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, Silvana Regina Favoretto, lembrou que as variantes já circulam entre nós há muito tempo. No entanto, até meados da década de 1990 se pensava que a raiva era transmitida apenas pelo cão. ;Para controlar a doença, é preciso conhecer e estudar como a transmissão ocorre. Os estudos genéticos nos permitem compreender por que outros hospedeiros de comportamento tão diferente do morcego são vulneráveis a essa variante. É possível que o estudo dê subsídios para entender o passado e antever o futuro;, observa.
O estudo também possibilitará a comparação entre a variante desvendada e as mantidas por outras espécies de morcego. "Conhecendo todo o genoma, temos condições de estudar como as transformações ocorreram, como a variante se adapta a novos hospedeiros e se está passando por novas mutações capazes de driblar a vacina", completa Angélica. As pesquisadoras já observaram, por exemplo, alterações nos sítios antigênicos do vírus sequenciado. Para elas, não há dúvidas de que o sequenciamento da variante pode revelar regiões do genoma que representam um padrão sequencial particular de aminoácidos que caracteriza uma função bioquímica. ;Esse conhecimento pode auxiliar no desenvolvimento de novas terapias e na manutenção eficiente da vigilância epidemiológica da doença;, adianta Silvana.
O vírus da raiva é neurotrópico, ou seja, multiplica-se no sistema nervoso do hospedeiro. Ainda que a vítima apresente os sintomas da doença, exames de sangue não conseguem detectá-la. No Brasil, até 2004, o cão era o principal transmissor da doença ao homem. Atualmente, a maioria das transmissões se dão por meio dos morcegos hematófagos (que se alimentam de sangue). São eles que também transmitem o mal para bovinos, equinos e outros mamíferos silvestres.
Prevenção
O controle feito pelo Ministério da Saúde por meio da vacinação profilática em cães e gatos tem dado bons resultados e o número de vítimas humanas foi reduzido ao longo dos anos. O último surto ocorreu em 2005 no Norte/Nordeste do país, quando 43 pessoas morreram. A variante sequenciada na USP foi a responsável pelas mortes. No início, a pessoa apresenta febre, dor de cabeça, perturbação do sono e irritabilidade. Antes de evoluir para o coma, há o comprometimento do sistema nervoso central, caracterizado por ansiedade, inquietude, desorientação, alucinações, comportamento bizarro e convulsões.
"A vítima humana pode ser tratada e a doença evitada se um esquema de vacinação for iniciado logo após o ataque do animal. Essa é a única forma preservar a vida, já que uma vez que os sintomas se manifestam, e isso pode ocorrer em um período que varia de uma semana a um mês, a morte é inevitável. É um quadro muito triste", alerta o neurologista do Instituto de Neurologia Emílio Ribas, em São Paulo. Felinos e caninos devem ser vacinados profilaticamente. Quando acometidos pela raiva, eles ficam agressivos, agitados e passam a não se alimentar. Os bovinos apresentam lacrimejamento, isolamento do rebanho e andar cambaleante.