Nem o mais cético dos seres humanos escapou de, um dia, bater na madeira para ;isolar; o azar. Independentemente de superstição ou crença religiosa, todo mundo acredita ; ou já acreditou ; em conceitos subjetivos como sorte, intuição, alma ou energia negativa. Bruce Hood também acreditava. Na década de 1970, quando era criança, via pela televisão paranormais como Uri Geller fazer coisas incríveis, como entortar colheres apenas com um suposto poder da mente. A curiosidade foi tanta que o canadense escolheu a psicologia como área de estudo. Nos bancos acadêmicos, descobriu que para tudo há uma explicação ; inclusive para o fato de as pessoas acreditarem no inacreditável.
Hoje diretor do Centro de Desenvolvimento Cognitivo da Universidade de Bristol, no Reino Unido, Hood estuda há mais de 20 anos os estágios de evolução da mente, pesquisa que inicialmente tinha as crianças como foco. O cientista foi percebendo que a maneira como os pequenos criam suas próprias teorias sobre o mundo, a partir de fatos que vivenciam ou observam, influencia, no futuro, as crenças adultas. Da experiência, surgiu o livro Supersentido ; porque acreditamos no inacreditável, que acaba de ser lançado no Brasil pela editora Novo Conceito.
Muito bem recebido no meio acadêmico, com direito a elogios da revista Science e de Harvard, o livro foi, contudo, escrito para leigos. Sem a complicada linguagem dos cientistas, Bruce Hood desenvolve a tese de que a mente humana foi projetada para acreditar em padrões, entidades e forças sobrenaturais. Essa crença independe de formação religiosa e nasce com cada indivíduo, como por intuição, e é chamada pelo psicólogo de supersentido.
Acreditar no improvável também não é uma questão de ignorância, lembra o autor. O ex-primeiro ministro britânico Tony Blair, por exemplo, usava o mesmo par de sapatos quando era sabatinado pelo parlamento. O presidente americano Barack Obama, durante a campanha política, achava que jogar uma partida de basquete em dias de eleição o ajudaria a chegar à Casa Branca. Para ser ordenado padre da Igreja Católica, o seminarista precisa de mais de 10 anos de formação e faz diversos cursos superiores, como filosofia e teologia ; para se ter uma ideia, o papa Bento XVI foi professor de diversas universidades alemãs e é doutor honoris causa em sete instituições de ensino superior do mundo. Mesmo assim, essas pessoas cultas e com educação formal acreditam em poderes ; sejam eles sorte ou Deus ; que não podem ser comprovados pela ciência. Essa, aliás, é a própria essência da fé: acreditar no improvável.
Nas últimas semanas, com o resgate histórico dos 33 mineiros chilenos que ficaram mais de dois meses soterrados sob a jazida de San José, o poder do misticismo ganhou novamente os jornais. Tanto o presidente Sebástian Piñera quanto as vítimas atribuíram o sucesso da operação ao sobrenatural. Um dos engenheiros envolvidos no resgate chegou a dizer que o resgate desafiou todas as leis naturais e que, durante os esforços, passou por situações ;estranhas;.
Sem desconsiderar as influências externas, Bruce Hood aposta, porém, na inclinação natural, fruto do processo evolutivo, para explicar o motivo pelo qual pessoas de todos os níveis culturais acreditam no subjetivo. ;O cérebro não surgiu do nada, pronto e preparado para lidar com o mundo. Em vez disso, nosso cérebro evolui gradualmente para resolver os problemas que nossos ancestrais tinham que enfrentar;, argumenta (leia entrevista). O cientista afirma que, para raciocinar, o homem precisa de padrões organizados na mente. Por exemplo, um bebê descobre sozinho que o lugar do brinquedo é dentro do berço e não no chão porque, todas as vezes que faz isso, a mãe cata o objeto e o coloca no lugar. Da mesma forma, os ancestrais do homem moderno aprenderam que as feras são perigosas de tanto terem morrido ao sair, inadvertidamente, de suas cavernas.
Bioquímica
Acostumada a pensar em padrões, a mente procura criá-los quando não encontra nenhum. Se 33 pessoas levam 33 horas paras serem resgatadas em uma data que, somada, dá 33, então tem de existir alguma ;coisa por trás;. ;O problema do design mental (a tendência da mente em organizar padrões) é que não conseguimos perceber os eventos que pensamos ser muito incomuns como fatos, na verdade, mais comuns do que imaginávamos;, alerta Hood. Para muitas pessoas, conhecer em uma festa alguém que faz aniversário na mesma data parece uma coincidência excepcional. Mas cálculos estatísticos já mostraram que a probabilidade é grande. Se um indivíduo vai a festas uma vez por semana, basta que haja 23 pessoas em cada ocasião para que as chances de ele encontrar alguém que nasceu na mesma data seja de 50%, no período de um ano.
De acordo com Hood, as crenças são reais, à medida que o processo bioquímico que se passa no cérebro quando uma pessoa é confrontada com um fato é o mesmo, seja esse evento verdadeiro ou imaginário. Por isso, se a mente de um indivíduo acredita ter visto um fantasma, não adianta tentar convencê-lo do contrário. O cérebro já registrou a cena, da mesma maneira que registra a imagem de um cachorro de carne e osso, por exemplo.
A intuição é o assunto da atual pesquisa de Hood, financiada pela Bial Foundation, de Portugal. Agora, o cientista quer investigar, com ressonâncias magnéticas, a mente de adultos que tendem a desenvolver relações afetivas com objetos. ;Previamente, mostramos que se pedimos a eles que rasguem a foto do objeto, eles ficarão chateados mesmo sabendo que é só uma fotografia. Sabemos isso medindo o quanto suam, por meio da mesma tecnologia dos detectores de mentira;, explica. De acordo com o psicólogo, muitos adultos não imaginavam que ficariam tão chateados, mas é a intuição, no fundo do cérebro, que fala mais alto. Mais uma vez, é o supersentido em ação.
Confira íntegra da entrevista com Bruce Hood
Quando faz uma de suas inúmeras palestras mudo afora, o psicólogo Bruce Hood costuma desafiar a plateia perguntando quem teria coragem de usar um casaco pertencente a um assassino. Mesmo quando, de brincadeira, oferece US$ 10 mil em troca, poucos levantam a mão. Ele faz isso para ilustrar o significado oculto que quase todo ser humano atribui ; seja ele crente, supersticioso ou ateu ; aos objetos. Repulsa no caso de uma peça de roupa que vestiu um criminoso, ou fascínio, quando se trata de arrematar em leilão, por exemplo, o smoking usado por uma celebridade na cerimônia do Oscar.
Sensações como essas, argumenta Hood, independem de religião ou manias ; estão ligadas ao desenvolvimento humano e são fruto da experiência das crianças quando, ainda muito pequenas, começam a criar sua própria teoria sobre o mundo e a razão. Com seus filhos, o psicólogo procurou encarar esse processo de forma natural, mas sempre pedia a opinião das crianças, para ensiná-las a refletir, sem acreditar cegamente no que as outras pessoas diziam.
Cético em relação às forças mágicas que movem as crenças, Hood admite que acreditar em algo é importante para a humanidade, sempre em busca de esperança e de um mecanismo que permita tomar as rédeas da situação. Nem o cientista, que estuda há mais de duas décadas o funcionamento do cérebro perante o inexplicável, escapa de, vez por outra, se ver tentado a acreditar em fatos além da razão. Mas, em entrevista ao Correio, ele conta que, nessas horas, agarra-se às suas próprias teorias: "É como acontece quando o avião está a 9 mil metros de altura e começa a turbulência. Minha resposta imediata é sentir medo e rezar, mas então eu tento pensar racionalmente sobre o quão seguros são os aviões".
Por que o sobrenatural despertou seu interesse acadêmico?
Quando criança, durante os anos 1970, eu era fascinado com a paranormalidade, especialmente depois de ver Uri Geller na televisão, entortando colheres. Essa foi uma das razões que abracei a psicologia quando entrei para a universidade. Porém logo descobri que não havia evidências científicas para qualquer habilidade paranormal. Mas me tornei imensamente interessado em entender como o cérebro se desenvolve, então, pelos próximos 20 anos anos, estudei o desenvolvimento das crianças. eu ainda estava interessado no sobrenatural, principalmente nos filmes, mas queria saber por que tantos adultos educados acreditavam que isso era real, quando não havia qualquer prova. Cerca de cinco anos atrás, percebi que muitos enganos cometidos por crianças ao tentar racionalizar o mundo refletem-se, mais tarde, nas crenças sobrenaturais dos adultos. Isso me levou a desenvolver a hipótese de que é o desenvolvimento natural da criança que induzem as crenças na idade adulta.
O senhor diz que a construção das crenças acontece na infância. Como o senhor lidou com seus próprios filhos a respeito desses mitos, como bruxas, Papai Noel, fantasmas e superstições?
Eu sou um liberal e tenho uma atitude muito tranquila como pai. A maior parte dos pais pensa que o desenvolvimento de seus filhos depende de como você os cria. Isso é verdade em partes, mas todas as evidências indicam que os genes são o fator mais importante no desenvolvimento da criança. Quem tem gêmeos sabe do que estou falando. Então, temos de ser condescendentes com suas crenças. Mas sempre perguntava para eles: "O que você acha sobre isso?", o que acredito ser tanto uma forma interessante de aprender, como pai, sobre o que os filhos pensam, quanto uma maneira de treiná-los a pensar de forma crítica, em vez de aceitar qualquer coisa que escutam por aí.
O senhor acha que as pessoas podem ficar um pouco chateadas de ouvir que suas crenças podem ser explicadas por mecanismos do cérebro?
Sim, sem dúvidas. Nossas crenças são algo que tomamos como algo muito importante. Ninguém gosta que digam que suas crenças possam estar erradas ou que foram geradas pela forma como nosso cérebro trabalha. Isso é especialmente verdadeiro para crenças sobrenaturais, incluindo a religião. As religiões são fundamentadas n fé e a fé requer que você acredite mesmo que não exista qualquer prova. Além disso, as crenças religiosas são sagradas ; elas não devem ser violadas ou questionadas, e quem faz isso está sendo sacrílego. É algo inaceitável para os religiosos. No livro, eu tento expor argumentos seculares para as crenças sobrenaturais, que são comuns até entre ateus, mas minha posição é a mesma a respeito de crenças religiosas, como orações, espíritos etc. Por exemplo, como podemos questionar a força das orações dos chilenos quando os mineiros foram salvos? Isso parece muita falta de respeito. Mas eu diria que foi a ciência e a tecnologia que os salvou, e não as orações.
Os chilenos ainda estão muito impressionados com o resgate dos mineiros e muitas pessoas, incluindo o presidente Sebastián Piñeira, têm falado bastante sobre o número 33. Eles acham que é mais do que coincidência o fato de que havia 33 mineiros, que o primeiro resgate levou 33 horas e que ocorreu em 13/10/10, cuja soma dá 33. Eles também estão intrigados por que, em agosto, os mineiros escreveram um bilhete às famílias, e a soma dos caracteres dá justamente 33. O senhor acha que as pessoas precisam acreditar em milagres ou respostas mágicas quando estão diante de situações trágicas?
Isso é muito interessante. O cérebro humano evoluiu para racionalizar o mundo, organizando os acontecimentos em padrões. E não conseguimos parar de fazer isso. É por isso que vemos padrões em qualquer lugar. Parece impossível, mas, na verdade, as coincidências não são exceção, elas são a regra. Nós simplesmente não estamos atentos sobre a infinita quantidade de padrões que existem. E, sim, acho que precisamos de milagres para que o mundo tenha sentido, e isso nos dá esperança de que as coisas melhorem. Não é coincidência que a maior parte dos supersticiosos ou religiosos são aquelas pessoas mais sofridas ; é uma forma de tentar deixar as coisas sob seu controle. Se há algo que os humanos acham estressante, é a falta de crença de que eles podem fazer algo em circunstâncias estressantes ; é por isso que rezamos, acreditamos e participamos de rituais supersticiosos.
Como o senhor lida, pessoalmente, como coisas que parecem não haver explicação? Por exemplo, um barulho esquisito ou uma coincidência estranha?
Como a maioria das pessoas, eu imediatamente tiro as conclusões erradas, o que é algo muito fácil de fazer. Mas então eu aplico minha lógica. Isso não me faz me sentir menos estranho, mas é um sistema intuitivo muito diferente da reação inicial. Então, eu luto para entender que isso faz parte dos meus processos cerebrais. É como acontece quando o avião está a 9 mil metros de altura e começa a turbulência. Minha resposta imediata é sentir medo e rezar, mas então eu tento pensar racionalmente sobre o quão seguros são os aviões!
É muito popular no Brasil a frase de Miguel de Cervantes: "Não acredito nas bruxas, mas que elas existem, existem". O senhor acha que, mesmo com explicações científicas, as pessoas continuarão acreditar que elas existem?
Acho que a crença é algo muito poderoso. Por exemplo, a crença na oração, na homeopatia, na sorte ou outras coisas positivas podem funcionar porque influenciam o estado de espírito da pessoa que acredita. Então, a crença pode funcionar, mas não através de um poder sobrenatural. Além disso, à medida que essas coisas afetam o cérebro, as crenças são reais. Todo conhecimento no cérebro é gerado e armazenado como atividade elétrica entre os neurônios. Esses padrões de atividade são gerados tanto quanto há eventos reais quanto imaginários. O cérebro não sabe diferenciar entre o real e o imaginário, e não há ninguém ao lado do seu cérebro para fazer essa decisão. Esse é o tópico do meu novo livro.
Por fim, o senhor usaria o casaco de um assassino?
Quanto você está disposta a me pagar?