Ciência e Saúde

Esquizofrenia seria decorrente do mau desenvolvimento do cérebro

Paloma Oliveto
postado em 11/11/2010 08:00
Há 100 anos a medicina sabe da existência de um distúrbio mental chamado esquizofrenia. Sabe, mas não se pode dizer que conhece. Desde que foi descrita pela primeira vez, em 1911, pelo suíço Eugen Bleuler, até hoje, a doença continua sem causa definida. Os tratamentos, principalmente farmacológicos, têm sido usados amplamente há pelo menos meio século, sem que provoquem os efeitos esperados. "Há poucas provas de que eles realmente melhoraram a qualidade de vida da maior parte dos pacientes. Mas isso pode mudar se começarmos a abordar a esquizofrenia como um distúrbio neurodesenvolvimental, com o aparecimento da psicose somente mais tarde, um estágio que potencialmente poderia ser prevenido na doença", argumenta o psiquiatra Thomas R. Insel, do Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos.

O médico é autor de um artigo que estampa a capa da revista especializada Nature desta semana, que se propõe a "repensar" a esquizofrenia, de forma que, daqui a 20 anos, os tratamentos oferecidos realmente ajudem a mudar a realidade dos pacientes. "Entender a doença sob uma nova abordagem pode não só melhorar os tratamentos, como significar uma possibilidade de cura no futuro", disse Insel ao Correio. O psiquiatra segue uma linha amplamente difundida entre especialistas de que a esquizofrenia é um distúrbio de origem neurológica que, com o passar do tempo, agrava-se, levando os pacientes ao estágio psicótico.

Segundo Insel, a esquizofrenia é uma síndrome - uma coleção de sintomas de causa desconhecida e que pode ser caracterizada predominantemente pelas crises psicóticas dos pacientes. Na maior parte dos casos, os primeiros sinais aparecem entre o fim da adolescência e o início da idade adulta, quando a pessoa começa a sofrer de alucinações e paranoias. "Essas manifestações da doença mudaram muito pouco ao longo do último século. Cem anos atrás, tínhamos muitas instituições públicas para tratar doenças mentais sérias, tuberculose e hanseníase. Das três doenças, apenas os distúrbios mentais, especialmente a esquizofrenia, continuam sem alteração, tanto na prevalência quanto na invalidez que pode provocar", critica Insel.

Estima-se que a doença atinja 1% da população mundial, sendo que menos de 14% dos pacientes conseguem se recuperar nos primeiros cinco anos após um episódio psicótico. A dificuldade de se encontrar um tratamento consistente reflete na falta de qualidade de vida de quem sofre do mal. Na Europa, menos de 20% de pessoas com esquizofrenia estão empregadas, e um estudo realizado nos Estados Unidos descobriu que esse é o percentual de doentes que se tornam sem-teto depois da primeira crise. "Apesar de muitos terem atribuído a falta de progresso aos sistemas de saúde falidos, a verdade é que ainda não temos um entendimento básico da psicopatologia do distúrbio; daí a falta de ferramentas para desenvolvermos um tratamento curativo ou preventivo", reconhece Insel.

Química
O psiquiatra explica que, quando Eugen Bleuler cunhou o termo esquizofrenia, ele acreditava que se tratava de um distúrbio do pensamento e do sentimento. Segundo Insel, durante boa parte do século 20, predominaram as teorias que estudavam a mente, mas desprezavam o cérebro. "A esquizofrenia era vista como uma reação psicótica, um ego fragmentado devido a uma rejeição materna", exemplifica.

Cinquenta anos depois, o pêndulo balançou para a outra direção: "Um foco no desequilíbrio químico do cérebro", diz. "A esquizofrenia passou a ser considerada como um distúrbio de dopamina, baseado nos efeitos indutores de psicose causados por drogas que liberam dopamina no cérebro, como a anfetamina. E também devido à eficácia antipsicótica de uma quantidade de drogas que bloqueiam o receptor D2 da dopamina." Porém, apesar de reconhecer que medicamentos que seguiam essa linha trouxeram alguns benefícios aos pacientes, Insel sustenta que elas não ajudaram na recuperação funcional dos pacientes. Segundo ele, os tratamentos ficaram muito focados nos remédios, deixando de lado o entendimento da doença.

Para o especialista, só será possível mapear a psicopatologia da doença a partir do reconhecimento de que essa é uma doença neurodesenvolvimental, abordagem proposta pela primeira vez há 20 anos. "A psicose quase sempre emerge no fim da adolescência ou no início da idade adulta, com um pico entre as idades de 18 e 25 anos, quando o córtex pré-frontal ainda está em desenvolvimento", diz. Por isso, para o psiquiatra, esse pode ser o momento em que falhas no desenvolvimento do cérebro levam à esquizofrenia. Como exemplo, cita o fato de que desnutrição materna, infecções durante o segundo trimestre de gestação, danos durante o parto e exposição a alguns tipos de substâncias químicas - fatores que já se sabe serem um risco para o cérebro - estão intimamente ligados à patologia.

O psiquiatra propõe o estudo dos genes para o mapeamento da doença. "A partir de células-tronco pluripotentes derivadas do fibroblasto (célula que compõe o tecido conjuntivo) de pacientes de esquizofrenia, poderemos ser capazes de estudar diferentes tipos de células neurais, incluindo seu desenvolvimento, suas conexões funcionais e suas respostas às perturbações", diz. Como podem se transformar em qualquer tipo de estrutura, as células-tronco dos pacientes podem ser induzidas a gerar neurônios. Baseado na pesquisa, ele acredita que será possível desenvolver terapias de origem molecular, que combatam os danos surgidos ao longo do desenvolvimento do cérebro. "Se começarmos logo essa abordagem, por volta de 2030 nossos objetivos vão incluir a prevenção e a cura da esquizofrenia", garante.

Mente dividida
O psiquiatra cunhou o termo esquizofrenia do grego skizo (cisão) e fhrenos (mente). Antes de Bleuler, já havia registros sobre o distúrbio, mas os médicos o chamavam de demência precoce, porque, erroneamente, achavam que só acometia os mais jovens. Embora não tenha sido a intenção do cientista suíço, a esquizofrenia acabou, com o tempo, ganhando um teor pejorativo.

Palavra de especialista
FATORES AMBIENTAIS

;Não é fácil predizer quando a esquizofrenia vai se manifestar. Apesar de estar associada a pelo menos 14 genes do genoma humano, a presença da doença em um membro da família não é suficiente para determinar se alguém vai ou não sucumbir à condição. Essa doença também tem um importante fator ambiental. A esquizofrenia pode ser provocada ainda dentro do útero, devido a uma infecção. Mas, ao contrário de outros distúrbios, como o autismo, pode levar anos para que os primeiros sintomas se desenvolvam. Os tratamentos farmacológicos continuam insatisfatórios, então clínicos e pesquisadores estão tentando encontrar outra direção. A grande questão dos últimos anos é se a doença pode ser prevenida. Na Universidade de Tel Aviv, começamos uma pesquisa sobre aspectos biológicos que podem ajudar a identificar a doença antes da manifestação sintomática. Se mudanças progressivas no cérebro ocorrerem antes de a esquizofrenia emergir, é possível que essas alterações possam prevenir a doença, por meio de intervenções precoces. Isso pode revolucionar o tratamento do distúrbio.;
Ina Weiner, pesquisadora do departamento de psicologia da Universidade de Tel Aviv

Depoimento*
DA LUZ ÀS TREVAS

Eu nunca tive nenhum diagnóstico psiquiátrico até os 28 anos, quando tive a primeira crise. Fui uma criança tímida e retraída, mas não sei se isso tem a ver com a psicose. Posso dizer que sempre fui uma pessoa normal, pois estudei, trabalhei e cuidei bem dos meus filhos, que hoje têm 5 e 7 anos. Um dia, no trabalho, comecei a achar que as pessoas estavam tramando contra mim. Até hoje acho que não foi tudo da minha cabeça, havia muitas fofocas sem fundamento, e uma delas me envolveu.

Nesse dia, saí feito uma louca, deixei minha mesa com uma pilha de trabalho. Dirigi até a minha casa, que fica a 40 minutos do lugar onde eu trabalhava, e corri tanto que cheguei em 15 minutos. As crianças estavam na escola e meu marido estava viajando a trabalho. Eu chorava muito e gritava também, assustei nossa empregada, que ligou para minha mãe. Ela diz que, quando chegou à minha casa, eu só dizia que ia colocar uma bomba no estabelecimento onde trabalhava e que depois ia me matar. Disso eu não me recordo, mas lembro que ficava pensando nos roteiros de filmes policiais para buscar inspiração para me vingar.

Nos dias seguintes, a ideia de matar era fixa. Comecei a achar que todo mundo estava me perseguindo, até o zelador do condomínio. Eu pensava que era vigiada, então colocava toalhas nas janelas para não ser espionada. À noite, ninguém podia acender as luzes da casa. Meus pais tiveram de ficar com as crianças, porque elas não podiam ver a mãe daquele jeito. Emagreci muito. Eu me recusava a comer porque achava que tinham colocado veneno na comida.

Todas as vezes que o telefone, o interfone ou a campainha tocavam, me dava uma sensação de pânico inexplicável. Meu marido e meus pais tentaram ajudar, mas eu tinha medo que me internassem em um hospício, que me colocassem camisa de força, me dessem choque elétrico. Com muita insistência, meu marido conseguiu me levar a um psiquiatra. Estou em tratamento há quatro anos e desde então eu só tive outra crise, mas bem mais fraca. Minha família é ótima e me apoia, mas é horrível você saber que todos acham você louca. De certa forma, me acho até abençoada, porque sei de outros esquizofrênicos que ouvem vozes, veem anjos, demônios... Isso não aconteceu comigo.

Voltei a trabalhar, em outro lugar, mas ninguém sabe da minha condição. O preconceito é muito grande, a palavra esquizofrênica é usada para xingar os outros. Eu entendo, porque, antes de ter um diagnóstico de doença mental, eu também tinha uma imagem muito preconceituosa. Claro que estou melhorando, mas preciso tomar três remédios fortes por dia, fazer terapia e ir ao psiquiatra a cada seis semanas. Mas a vida nunca mais é a mesma. Você passa o tempo todo com medo de ter uma recaída, de estar normal e, de repente, voltar à escuridão da loucura.
*A paciente, que não quis se identificar, tem 32 anos, é tradutora e mora em São Paulo.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação