Ciência e Saúde

Experimento desenvolvido em Minas cria cerveja com DNA brasileiro

Experimento desenvolvido em Minas Gerais mostra potencial para o país ter fonte própria de levedo, substituindo ou servindo de alternativa aos similares europeus necessários para a produção da bebida

postado em 15/11/2010 08:00

Experimento desenvolvido em Minas Gerais mostra potencial para o país ter fonte própria de levedo, substituindo ou servindo de alternativa aos similares europeus necessários para a produção da bebidaBelo Horizonte ; Água, malte, lúpulo e levedo. São apenas quatro os ingredientes básicos da cerveja, ainda que suas dezenas de estilos façam supor o contrário. À exceção da água, praticamente tudo é importado para a fabricação da bebida no Brasil, quadro que pode mudar a partir de agora, graças à iniciativa pioneira de pesquisadores e produtores de Minas Gerais no estudo sobre o uso de levedo de cachaça na fermentação da cerveja, substituindo cobiçados similares europeus. Mais do que mera questão de custo, está em jogo a possibilidade de o país mostrar potencial como fonte de matéria-prima única no mundo.

Levedos são fungos microscópicos. Durante o processo de produção da cerveja, são adicionados aos bilhões ao mosto (como é chamado o malte macerado com água quente) para desencadear o processo de fermentação, durante o qual são originados o álcool e o gás carbônico. Além disso, é justamente nesse momento que surgem compostos secundários (alcoóis superiores e ésteres) fundamentais para a formação de aromas da bebida. Há centenas de tipos de levedos, sendo que a minoria é adequada para esse uso. Um deles está presente no mosto de fermentação da cachaça mineira.

A primeira cerveja elaborada com levedo de cachaça foi feita recentemente na cervejaria-escola Taberna do Vale, em Nova Lima, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Batizada de Carolweiss, é uma cerveja de trigo desenvolvida pelo cervejeiro Felipe Viegas e pelo farmacêutico José Eduardo Marinho. A ideia surgiu há dois anos, durante uma palestra de Rogélio Brandão, professor do Núcleo de Pesquisas em Ciências Biológicas da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e sócio da Cerlev, empresa que presta serviços na área de fermentação. Atualmente, ele prepara um estudo a ser desenvolvido no curso de mestrado sobre a ação de diferentes levedos de cachaça no mesmo mosto de cerveja.

Felipes Viegas e José Eduardo Marinho: autores da cerveja com levedo mineiroA partir daí, José Eduardo foi buscar num alambique da fazenda do pai, em Mariana, a 110km da capital mineira, o insumo para o experimento. Coletou amostras no local e fez a cultura para a multiplicação dos levedos. Ao eliminar bactérias nocivas e outros micro-organismos desnecessários e menos resistentes, isolou completamente um único tipo de levedo. Antes de usá-lo, foi preciso realizar a transição, já que estava ;habituado; a fermentar sempre o açúcar da cana, e não o do malte. Sucessivas gerações do mesmo levedo foram cultivadas por dois meses em mosto de cerveja com nível cada vez menor de açúcar de cana.

Teor alcoólico
O levedo obtido desse processo é capaz de fermentar naturalmente mosto formado só por malte, prova de que já está pronto para ser usado na fabricação de cerveja. Os resultados surpreenderam Felipe e José Eduardo: a cerveja ficou com teor alcoólico maior que o habitual ; 5,5%; 0,2% a mais ;, e a fermentação, que demora cerca de seis horas para começar, teve início em duas horas. ;Alguns levedos são neutros e fermentam bem vários estilos de cerveja, o que não foi o caso desse. Testei-o numa pale ale e não deu certo. Por enquanto, mostrou que trabalha bem em cervejas de trigo dos tipos clara e bock;, explica Felipe. Na bock de trigo, a diferença na graduação de álcool foi ainda maior, 0,5% a mais. Ale é a denominação usada para a família de cervejas de alta fermentação e pale é um subgrupo de bebidas da família ale. Já a cerveja bock é aquela cerveja de baixa fermentação, com cor escura e sabor mais forte.

Em termos de sabor, as cervejas de trigo que a dupla produziu apresentam características aromáticas semelhantes às feitas com o levedo tradicional do estilo, mas com alguns toques diferentes. Na versão clara, o levedo de cachaça conferiu surpreendente nota de maçã, enquanto na bock houve predominância do aroma de ameixa seca sobre os de banana, passa e cravo ; exatamente o contrário do que seria esperado no método habitual. São características que as tornam únicas no mapa-múndi cervejeiro. Por enquanto, nenhuma está à venda.

Por esse motivo, Felipe não descarta a hipótese de pleitear reconhecimento da ;weiss mineira" no Beer Judge Certification Program (BJCP), entidade autora do guia de estilos de cerveja mais adotado no mundo. ;Na Argentina estão desenvolvendo um estilo próprio, chamado dorada pampeana, que querem aprovar no BJCP. É uma cerveja lager (denominação usada para a família de cervejas de baixa fermentação) com malte pilsen cultivado lá. Por que não fazer o mesmo com a nossa cerveja?;, questiona. Os próximos passos, revela, serão desenvolver cervejas ainda mais alcoólicas (até 13%) com esse levedo e testar variedades coletadas em alambiques de outras regiões de Minas Gerais.

O que muda com o levedo de cachaça mineira nas cervejas de trigo

  • A fermentação teve início em duas horas, tempo três vezes menor do que quando são usados levedos tradicionais. Isso reduz o período em que o mosto fica vulnerável à contaminação
  • Como o levedo é mais resistente ao álcool que os demais usados na fabricação de cerveja, a bebida ficou com graduação alcoólica maior do que a esperada
  • A fermentação deu origem a outros tipos de compostos secundários, resultando em notas aromáticas diferentes e a outras relações de predominância entre as notas já conhecidas
  • O processo de fermentação ocorreu com atividade celular mais intensa, dificultando a proliferação de colônias de micro-organismos concorrentes, o que causaria alterações de aroma e paladar
  • A cerveja ficou ligeiramente mais turva, uma vez que o levedo utilizado permite menor decantação, permanecendo em suspensão

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