Quando foi a última vez que você se dispôs a ajudar alguém sem receber nada em troca? Uma pesquisa realizada pela organização Charities Aid Foundation em 153 países mostrou que o brasileiro anda deixando de lado a generosidade. Apesar do resultado mediano ; o Brasil é o septuagésimo sexto colocado no ranking ;, especialistas garantem que, ensinando as crianças a serem mais generosas e criando leis que estimulem a doação de tempo e dinheiro, o país deve se tornar uma potência da generosidade.
Na pesquisa, os entrevistados respondiam a perguntas relacionadas a três aspectos ligados à generosidade: disposição para ajudar pessoas desconhecidas, disponibilidade para doar tempo como voluntário e doação de dinheiro para instituições e pessoas necessitadas. O resultado do Brasil, apesar de ser mediano, foi bastante desigual em cada uma das categorias. Por aqui, enquanto apenas 15% dos entrevistados disseram ter feito trabalho voluntário nas últimas semanas, quase metade disse estar disposta a ajudar desconhecidos.
Segundo Márcia Woods, diretora-executiva do Instituto para o Desenvolvimento para o Investimento Social (Idis) ; organização que representa a Charities Aid Foundation no Brasil ;, esse panorama nacional é fruto do momento histórico em que vivemos. ;O fato de as pessoas estarem dispostas a ajudar desconhecidos mostra que a generosidade está na essência da população;, afirma. ;Isso mostra que os resultados mais baixos nos outros dois aspectos se devem muito mais às dificuldades de articulação da sociedade civil e à falta de estímulos para quem doa tempo ou dinheiro do que ao desinteresse das pessoas;, afirma.
Portanto, a saída para potencializar essa disposição inata do povo brasileiro, segundo Márcia, seria criar redes de estímulo à doação de tempo e dinheiro. ;Esse tipo de ação precisa ser legitimizado. Temos que ter condições mais favoráveis, leis que facilitem a doação de dinheiro e estimulem o trabalho voluntário como as que outros países já adotam;, afirma. Para ela, as organizações não governamentais têm um papel fundamental nesse sentido. ;É preciso trabalhar para engajar mais a população nas questões. O terceiro setor começou a trabalhar isso melhor nos últimos anos, mas ainda há muito para ser feito;, completa Márcia.
Sentimento perdido
Para a artesã Darci Pereira, 65 anos, o Brasil é um país bastante diverso e isso se reflete também no nível de generosidade das pessoas. ;Percebo que há posicionamentos muito diferentes entre as pessoas quando o assunto é generosidade. Há muita gente que cultiva esse tipo de atitude, mas infelizmente também há quem não esteja nem aí;, acredita. ;Já passei por situações em que pedi informações a estranhos na rua e fui totalmente ignorada; outras vezes, encontrei pessoas tão generosas que se dispuseram a alterar seus caminhos para me dar uma carona e me ajudar a chegar ao meu destino;, exemplifica.
Ela acredita que, nos últimos anos, esse valor tem se perdido. ;Antigamente, as pessoas se preocupavam mais em ser gentis, em ajudar umas às outras. Hoje, não. Acredito que as pessoas estão cada vez mais focadas no seu próprio eu e se esquecem de que pequenas ações no dia a dia podem ter um efeito muito bom;, afirma Darci, que faz trabalhos voluntários com mães carentes que precisam de enxoval para bebês. ;Acho que isso é, de certa forma, fruto dos problemas econômicos que vivemos. As pessoas se empobreceram e passaram a se focar mais nas próprias vidas. Talvez agora, que a economia está melhor, isso melhore um pouco;, opina.
Apesar de trabalhar em lugares onde as pessoas relaxam e se divertem, como parques e praças, o vendedor de sorvete Marcos Ribeiro Nunes, 48 anos, não percebe a mesma generosidade descrita por Darci. ;Há bastante tempo as pessoas esqueceram o quanto pode ser bom ajudar os desconhecidos. Mesmo as pequenas gentilezas acabaram sendo deixadas de lado;, afirma. ;Acho que estão acabando os valores. As pessoas não ligam mais para o sofrimento e a necessidade dos outros, especialmente os mais pobres;, comenta.
Para ele, o resultado brasileiro na pesquisa britânica poderia ser melhor. A saída estaria numa mudança de postura dos cidadãos. ;Para ser generoso, é preciso se botar no lugar do outro, entender o sofrimento e a necessidade de quem precisa de ajuda. Do contrário, não adianta nada só ajudar simplesmente por ajudar;, afirma. ;Acredito que essa mudança seja possível, basta as pessoas quererem;, completa Marcos.
Outro aspecto revelado pela pesquisa foi a desconexão entre riqueza econômica e generosidade. Ao contrário do que se poderia imaginar, há países extremamente ricos e pobres tanto no topo quanto no fim do ranking.
Segundo Márcia Woods, os pesquisadores constataram que existe uma conexão muito maior entre a generosidade com o sentimento de felicidade e bem estar da população, do que com a questão econômica. ;Percebemos que, de maneira geral, nos países em que as pessoas se diziam mais satisfeitas com suas vidas, independentemente dos problemas sociais enfrentados, a disposição para ajudar era maior do que naqueles em que as pessoas se sentiam mais infelizes, mesmo que fossem regiões mais ricas;, comenta.
Desde cedo
A servidora pública Sandra Alves, 30 anos, e o publicitário Luciano Costa, 38, acreditam que generosidade se aprende desde cedo. Pelo menos é assim que eles tentam criar as duas filhas, Cecília, 2, e Luciana, 8 meses. ;Desde pequenininha, a gente pode dar lições no dia a dia sobre compartilhar as coisas, dividir os brinquedos, emprestar as coisas para os coleguinhas;, relata a mãe. ;Apesar de pequenas, elas entendem isso, e vão aprendendo que é importante ter esse tipo de atitude;, completa o pai.
Para eles, além de falar, é importante demonstrar. ;A melhor maneira de educar é com exemplos. Então, se as duas veem a gente sendo generoso, acabam aprendendo isso;, acreditam os pais. ;As pessoas vivem numa correria no cotidiano e acabam deixando de lado esse tipo de atitude, mas se aprenderem desde pequenas, que é o que pretendemos com nossas filhas, a pressa não conseguirá bloquear esse tipo de atitude;, concluem.
A teoria do casal ; de que generosidade se aprende desde cedo ; foi comprovada pela psicóloga da Universidade Federal de Rondônia (Unir) Vanessa Lima. Em sua dissertação de mestrado defendida na Universidade de São Paulo (USP), Vanessa estudou o conceito de generosidade em crianças de 6, 9 e 12 anos. ;Minha pesquisa provou que esse conceito pode ser claramente investigado e comprovado a partir dos 6 anos de idade, mas minha experiência como mãe, tia, madrinha e minhas observações me mostraram que a generosidade está presente desde bem mais cedo;, afirma.
Segundo ela, é aos 4 anos que esse conceito está mais claramente presente na vida dos pequenos. ;É quando já se vê uma criança partilhando algo que é seu por generosidade, ou seja, abrindo mão de algo seu em prol de ver o outro feliz;, conta a psicóloga, que explica que esse conceito surge naturalmente, diferentemente de outros valores, como a justiça, que precisam ser aprendidos. ;Convencer uma criança de 6 anos de que é dever dela, ou seja, justiça, partilhar seus biscoitos, quarto e brinquedos com seus irmãos é muito mais difícil, enquanto que a generosidade surge espontaneamente;, completa.
O conceito de generosidade se forma muito cedo? Quando é que as crianças adquirem a noção de que é preciso ser generoso?
Sim, minha pesquisa provou que o conceito de generosidade pode ser claramente investigado e comprovado a partir dos 06 anos de idade, mas minha experiência como mãe, tia, madrinha e minhas observações como Supervisora de Estágio em Psicologia Escolar na Universidade Federal de Rondônia ; UNIR e trabalhando com consultoria às escolas públicas na discussão da queixa escolar, me mostraram que a generosidade está presente desde bem mais cedo, aproximadamente aos 4 anos de idade, quando já se vê uma criança partilhando algo que é seu por generosidade, ou seja, abrindo mão de algo seu em prol de ver o outro feliz.
Tomemos então o conceito de generosidade na sua origem, que generosidade é dar a outro algo que lhe faz falta, que pode ser algo material, mas a generosidade envolve substancialmente aspectos não materiais, como seu tempo, sua atenção. É difícil perceber a generosidade quando se trata de algo material pois é bastante discutível o quanto algo de material (uma roupa, emprestar seu carro, dinheiro) pode lhe fazer realmente falta. Quanto aos aspectos subjetivos, a dor da perda é bem mais clara, por exemplo do tempo que gostaríamos de dispor para nosso próprio prazer e resolvemos dedicá-lo a outra pessoa.
O que mais impressiona é o fato de que, aos 6 anos a criança ainda tem dificuldade de ser justa, embora os exemplos de justiça e as falas dos pais sobre justiça sejam mais comuns, mais freqüentes. Convencer uma criança de 6 anos de que é dever dela, ou seja, justiça, partilhar seus biscoitos, quarto, brinquedos com seus irmãos é muito mais difícil, enquanto que a generosidade surge espontaneamente.
O suíço Jean Piaget em sua teoria da Epistemologia Genética, já defendia a existência de estruturas que possibilitavam o surgimento da moralidade, assim como do pensamento e da lógica. Estruturas, claro, que precisam ser estimuladas para que haja a construção do conhecimento, seja acerca da linguagem, do pensamento ou da moralidade. E atualmente, pesquisas de neuropsicologia e psicobiologia tem demonstrado este fato .
As virtudes são parte da moralidade, pois que implicam em resultados para a melhor convivência entre os seres humanos, ou nas palavras de Aristóteles ; Ética a Nicômaco, possibilitam a busca da felicidade, não só individual, mas do grupo.
Existem diferenças no conceito de generosidade de acordo com a classe social?
Embora haja certa confusão entre a população do que seja generosidade, muitas pessoas confundem generosidade com solidariedade (que é dar o que lhe sobra, como dinheiro no semáforo ou roupas de frio antigas). Então, a questão não é diferença no conceito de generosidade. Em qualquer classe social fica bem claro quando se está fazendo algo para outra pessoa por justiça, porque isto é um direito da outra pessoa e não faço mais do que minha obrigação em dar a ela o que é seu de direito e quando se faz por outrem (na moralidade other regarding é um princípio essencial, embora hoje já se discuta que há aspectos morais também em atos self regarding), a questão é quando as crianças passam a valorizar mais o ato generoso ou outros atos, como o ato justo . O que minha pesquisa demonstrou é que nas classes menos favorecidas economicamente, o ato generoso só passa a ter mais valor (como um ato nobre) a partir dos 09 anos, sendo até então MAIS valorizando , um ato justo. A ausência da justiça parece ser uma falta grave nas classes menos favorecidas economicamente até os 09 anos de idade. Já nas crianças de classe média e alta, da escola particular, o ato generoso é visto como mais valorizado desde cedo, desde os 6 anos de idade. O reconhecimento da nobreza do ato, pois embora não fosse dever da pessoa fazê-lo, ela foi além de sua obrigação.
Outras virtudes se formam intrinsecamente com o conceito de generosidade?
De minha pesquisa posso afirmar que as virtudes da Amizade e da Fidelidade surgem intrinsecamente relacionadas com a virtude da generosidade. Posteriormente realizei pesquisa com a virtude do perdão com crianças também de 6, 9 e 12 anos, tanto da escola pública quanto particular e novamente podemos afirmar que a virtude do perdão também é compreendida pelas crianças a partir dos 6 anos de idade (com certeza) e que esta virtude, o perdão, também está referenciada/relacionada a outras virtudes, como a amizade e a fidelidade. Algo interessante da virtude do perdão é que é mais fácil perdoar quando há uma perda material do que uma perda sentimental e que é mais fácil perdoar quando não houve uma vergonha pública. E a prova de que a virtude do perdão se relaciona, por exemplo, à virtude da amizade é que as questões do ressentimento e/ou da perda material são relevadas em função de uma amizade e do grau e tempo deste e um único acontecimento não é suficiente para prejudicar uma amizade.
Em sua opinião (de acordo com a pesquisa, e com sua experiência de vida) o brasileiro é um povo generoso?
Como não sou pesquisadora dos aspectos culturais da psicologia e como minhas pesquisas não se estenderam ainda aos adultos no tema das virtudes, não posso afirmar, mas como você pergunta de minha experiência, tenho 40 anos de vida e minhas observações sérias do mundo são dos últimos 20 anos. Temo lhe dizer que concordo com o Dr. Yves de La Taille que em seus últimos livros vem discutindo a crise dos valores de nossa sociedade e a leitura dele é interessante porque parte de muitos exemplos que envolvem os jovens - como revelação do que estão recebendo e como sinalização do que nos espera no futuro. E minha resposta para sua pergunta (baseada em minhas observações e conclusões interdisciplinares) é: não, o brasileiro não é um povo generoso. Aliás, estamos vivendo tempos difíceis, quando até as questões da justiça (seja como virtude seja como princípio universal da moralidade ; como acreditavam Jean Piaget e Lawrence Kohlberg, psicólogo, pesquisador da moral, norte americano) na sua perspectiva de preocupação com os outros (other regarding), com a sociedade, em busca de uma sociedade mais harmônica, onde todos pudéssemos viver melhor, está em falta. Mesmo em solidariedade as pesquisas demonstram que o brasileiro é menos solidário que outros povos. Ainda mais agora que as pesquisas demonstram que a solidariedade é self regarding, ou seja, quem faz solidariedade às vezes se beneficia, pelo sentimento de bem estar, às vezes mais do que os beneficiados. Não, o povo brasileiro não é generoso, em minha opinião. Mas não generalizemos, há muitas pessoas generosas no Brasil.