postado em 14/12/2010 08:00
A auxiliar de serviços gerais Selma Aparecida Boas, 28 anos, sofria por não conseguir abraçar. A impossibilidade de abrir os braços e acalentar as pessoas queridas se tornou, aos poucos, uma barreira que a segregava do mundo. ;Sofria muito porque acabei me afastando daqueles que mais me queriam bem. Tive uma educação rígida e não conseguia demonstrar carinho;, relata. A angústia de Selma, no entanto, ficou no passado. A terapia comunitária integrativa foi o instrumento de resgate. ;Com ela, pude enxergar que não estava sozinha. Todos nós temos problemas. Às vezes, nem os percebemos ou fazemos questão de escondê-los dentro de nós. Mas eles estão lá, promovendo sofrimento. O exemplo de superação de companheiros do grupo de que participo mudou a minha história. Com eles, aprendi a abraçar;, revela a moça.
Ouvir e ser ouvido, falar para tirar da alma a dor que desencadeia males físicos são alguns objetivos da terapia comunitária integrativa (TCI), método que nasceu no Departamento de Estudos Comunitários da Faculdade de Medicina na Universidade Federal do Ceará (UFC) há 25 anos. Trata-se de uma metodologia desenvolvida pelo psiquiatra e antropólogo Adalberto Barreto. O médico percebeu que moradores da Favela de Pirambu, em Fortaleza, o procuravam na UFC para tratar males que não demandavam medicamentos. ;As pessoas sofrem por serem ignoradas. Eu me dei conta de que, como psiquiatra, talvez estivesse medicalizando o sofrimento. Na universidade, não tínhamos como atender à demanda. Então, resolvi ir até a favela com os estudantes para ouvir os moradores do local;, explica o médico e professor.
Uma pesquisa realizada ao longo dos 25 anos trilhados por Barreto e seus seguidores mostrou que 88% das pessoas que frequentam a TCI resolvem suas questões com a terapia. Só a minoria restante necessita de atendimento individual de psiquiatras e psicoterapeutas. Segundo o médico, a terapia não trabalha em cima das carências do ser humano, mas a partir de suas competências e virtudes. ;A TCI entende que podemos amar porque fomos amados, mas também somos capazes de receber e dar amor, ainda que ele não tenha sido uma constante em nossa história;, atenta. As rodas, como são chamados os grupos de TCI, são coordenadas por terapeutas comunitários formados por um curso desenvolvido pelo próprio Barreto. Não é necessário ter formação superior, mas é fundamental ter um perfil mediador.
Regras
Os terapeutas comunitários coordenam as reuniões e seguem regras que orientam o trabalho. A primeira delas é o respeito ao silêncio e à palavra do outro. Quando alguém fala, todos escutam. Não dar conselhos e falar somente de si próprio também são preceitos levados com disciplina, assim como a observação aos aspectos culturais do local onde a roda se realiza. Para a assistente social Sarah Maria Coelho de Souza, vice-presidente do Movimento Integrado de Saúde Comunitária do Distrito Federal (Mismec), ONG que implantou a TCI no DF, o trabalho do terapeuta comunitário leva em consideração o conhecimento científico e acadêmico. Sarah pondera que essa vertente, no entanto, não é a única que nos move. ;A ciência não tem a hegemonia da produção do conhecimento. A experiência de vida gera um saber impagável, e qualquer pessoa, independentemente do seu nível social, econômico ou cultural, agrega experiências úteis ao próximo. A riqueza da terapia comunitária integrativa está justamente nesse reconhecimento;, diz.
A TCI parte de uma situação-problema que os próprios participantes trazem ao grupo, que se reúne periodicamente ao ar livre ou em ambientes reservados. Não há limites em relação ao número de participantes, mas é interessante que sejam grupos em que todos possam dar voz a angústias e sofrimentos. Em um primeiro momento, é feita a acolhida. O terapeuta comunitário relembra as regras e abre a reunião. ;Integramos canções e brincadeiras à dinâmica. Elas fazem parte do traço cultural do brasileiro. Depois, damos a palavra àqueles que querem compartilhar um tema. Em seguida, perguntamos quem se identifica com os assuntos propostos e fazemos uma votação para escolher sobre o que será conversado;, explica a terapeuta comunitária Dulcicleide de Araújo Melo, que acompanha um grupo formado pelos empregados da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, da diretoria regional de Brasília.
Dulcicleide recorda que sua experiência como assistente social lhe mostrou que a pior miséria em uma comunidade não é a provocada pela pobreza, mas a que habita o interior das pessoas que, por motivos variados, não acreditam na própria capacidade. ;Na terapia comunitária compartilhamos amarguras e experiências de superação. Com isso, descobrimos que as soluções estão ao alcance de todos;, acrescenta.
Nos grupos, os participantes estão ávidos para serem ouvidos. Querem chorar, escutar, compartilhar sucessos e insucessos. A mãe que teve seu filho preso, assassinado ou que o perdeu para as drogas necessita de um medicamento para dormir ou de acolhimento humano? Quem questiona é o próprio médico que desenvolveu a TCI. ;Entender que outras pessoas também sofrem, que as mazelas não são um complô e que é possível buscar o apoio do próximo é o que visa a terapia comunitária integrativa. Sabemos que, quando a boca cala, os órgãos falam. E quando a boca fala, os órgãos saram. Nossa terapia é preventiva. Não trabalhamos a patologia, mas o sofrimento;, pontua Barreto.
Antes e depois
A TCI, porém, tem sido um grande apoio aos que já se encontram doentes. Foi o que ocorreu com o operador de triagem João*, 54 anos. ;Sofri muitos anos com o alcoolismo. Depois que o problema foi controlado, desenvolvi compulsão, passei a ter crises de pânico e depressão. Sempre tive dificuldade para me integrar a grupos, mas foi com a terapia comunitária que aprendi a falar. Minha vida pode ser definida em duas partes: o antes e o depois da TCI;, resume.
João relata que ficou afastado do trabalho por meia década e que perdeu a conta das vezes em que passava dias escondido de baixo da cama com medo de tudo. Compartilhando seu drama e escutando pessoas que passavam por situações semelhantes ou distintas à sua, ele reagiu. ;Eu me emociono até hoje quando tenho a oportunidade de ouvir e ser ouvido, quando recebo atenção. Estive muito próximo da morte. Cheguei ao fundo do poço. Mas, mesmo nesse local, escuro e solitário, ainda existe água pura. A que eu bebi veio dos corações dos terapeutas e colegas que me escutaram . A TCI trouxe minha vida de volta;, considera.
Para alguns participantes, a terapia comunitária é um colo de mãe. O auxiliar administrativo Carlos*, 41 anos, conseguiu se curar da dependência química por conta própria. A TCI o ajudou em um momento de recaída. ;Nessa época, recorri ao tratamento clínico, mas foi a terapia comunitária que me trouxe o alento emocional. Álcool e drogas são rotas traiçoeiras. Eu me sentia rejeitado e desvalorizado. Mas, por pior que seja nossa situação, sempre podemos sacudir a poeira e superar;, diz.
Compartilhar as angústias que o assombravam e saber que não era o único no mundo a sofrer, deu a Carlos a força necessária para encarar desafios. ;A TCI é um como um colo de mãe. Não tem custo, os participantes podem falar ou apenas ouvir, e os terapeutas nos acolhem sem nada cobrar. É um trabalho voluntário, uma porta que jamais se fecha;, define Carlos.
Maria Helena Souza Silvestre, 42 anos, recorda que chegou de mansinho na roda de terapia comunitária que frequenta há dois anos, no Tribunal Superior do Trabalho (TST), onde é auxiliar de limpeza. Ela carregava na alma uma ferida que parecia incurável. ;Não conseguia superar a morte violenta do meu irmão caçula, não desabafava e guardava em mim a dor. Mas na TCI pude externar meu sofrimento, extravasar, ser humana. Em casa tinha que ser forte o tempo todo;, explica. Maria Helena descobriu que é importante confiar em si próprio e nos outros. ;Pode parecer estranho, mas na terapia constatamos que somos diferentes e semelhantes uns aos outros. O amor ao próximo passa por essa aceitação e pela dedicação que podemos dar a pessoas que vivem dramas tão graves quanto os nossos. É essa troca que nos faz tão bem e nos ajuda a superar os revezes da vida;, garante.
; Nomes fictícios a pedido dos entrevistados.
GRUPOS
O Mismec tem a listagem dos grupos que se reúnem
do DF e é responsável pelos cursos de TCI. Mais informações pelo telefone 3347-8563.
Três perguntas para Adalberto Barreto, psiquiatra e antopólogo que desenvolveu a terapia comunitária integrativa
Por que quando a boca cala, os órgãos falam?
A saúde é a síntese de uma série de processos decorrentes de determinantes socias da saúde, como as desigualdades sociais, a exclusão social, o desemprego, a dependência.O estresse faz com que o sistema imunitário fique comprometido, ocasionando danos à saúde física, como infecções, males cardiovasculares, diabetes, depressão e agressividade. O sofrimento, a dor da alma, as frustrações da vida são o foco do trabalho da TCI. Notei que a humanidade carece de ser ouvida, necessita compartilhar experiências para se livrar das mazelas emocionais e físicas.
A utilização de medicinas paralelas, como a TC, que ameaçam a cura dos males que a medicina científica ainda não responde, é rejeitada por médicos?
A promoção da saúde e a cura de doenças são duas faces da mesma moeda da vida. A doença que atinge o corpo é tratada com bisturi e drogas. Mas temos que lembrar que existe o sofrimento e suas ações preventivas. Nesse sentido, não há barreira entre corpo, mente e espírito. O trabalho da TCI é focado no resgate da auto-estima da comunidade. Por isso, o terapeuta não precisa de uma faculdade. Ele não vai fazer nenhuma análise, interpretação ou julgamento. Ele vai aprender a escutar e fazer perguntas. Fica claro que não estamos concorrendo com o saber produzido na academia, a idéia é unir as duas forças.
A TCI é oferecida em todo o Brasil?
A rede de TCI no Brasil possui mais de 40 pólos formadores, com cerca de 12,6 mil terapeutas treinados pela Associação Brasileira de Terapia Comunitária e 600 mil rodas de TCI realizadas. A rede tem atuado nas áreas de saúde, educação, segurança pública, entre outras. O Ministério da Saúde reconhece a importância dessa metodologia e tem apoiado ações em todo o país. Semana passada estive em uma aldeia indígena em Porto Seguro (BA), dando o curso, que foi apoiado pela Secretaria Nacional Antidrogas (Senad) e pela Funai. Nosso método já é usado e reconhecido na Europa e está em meios de implantação na África.
Palavra de especialista
Há muitos grupos de TCI espalhados pelo Brasil, mas poucos deles ocorrem no ambiente de trabalho. O Tribunal Superior do Trabalho, em Brasília, formou um grupo com terceirizados da área de conservação e limpeza. O grupo conta com frequência média de 35 participantes que se reúnem semanalmente durante uma hora no horário do expediente. Nossa experiência demonstra que, ao criar esse espaço de troca no ambiente de trabalho, a organização demonstra valorizar os seus empregados. Neste grupo, os participantes redescobriram seus potenciais e competências, o que resultou na melhora da autoestima e na busca por qualificação. Como resultado, percebe-se melhoria na comunicação e aumento do sentimento de união. As empresas não podem ignorar a necessidade que o ser humano tem de verbalizar, de compartilhar e socializar-se. Estudos indicam que, quando o indivíduo fala das questões que o afligem, ele elabora sua dor, ressignificando-a e transformando a percepção dos problemas que vivencia. (Teresa Cristina Guedes de Paula Freire - psicóloga e terapeuta comunitária que acompanha o grupo de TST)