Ciência e Saúde

Europa prepara homenagens para os 100 anos dos dois Nobels de Marie Curie

Em 1911, a polonesa Marie Curie se tornou a primeira pessoa a receber dois prêmios Nobel, conquistados pela descoberta da radioatividade e dos elementos rádio e polônio. A Europa prepara série de homenagens para celebrar, no próximo ano, o centenário do feito, jamais repetido por outro cientista

postado em 20/12/2010 08:00

Ela nasceu Maria Sklodowska, na Polônia dominada pela Rússia do fim do século 19. Em 1881, quando tinha 14 anos, mudou de nome e de país. Em Paris, tornou-se Marie e, alguns anos depois, adotou o sobrenome do marido, Pierre Curie, um dos diretores da renomada Universidade Sorbonne. Num tempo em que as oportunidades para as mulheres não iam muito além das cozinhas de casa, recusou o destino de tantas outras. De família humilde, tornou-se uma das poucas mulheres a frequentar a Sorbonne na época graças a uma bolsa de estudos que recebeu em reconhecimento aos seus esforços acadêmicos. Formou-se em matemática e química, fez dois mestrados, um doutorado e recebeu um Prêmio Nobel de Física e outro de Química. Cem anos depois de ela se tornar a primeira mulher a receber individualmente a láurea, a Europa declarou 2011 o Ano Marie Curie na Ciência, programando uma série de homenagens à descobridora da radioatividade e dos elementos rádio e polônio.

Dezoito anos antes de ser agraciada com o prêmio mais importante do meio científico, Marie foi selecionada pela Sociedade de Incentivo à Indústria Nacional da França para desenvolver um estudo sobre as propriedades magnéticas do aço. Era 1893 e, como precisava de um laboratório para realizar seus experimentos, foi encaminhada a Pierre Curie, chefe do laboratório da Escola Municipal de Física e Química em Paris, com quem fundou uma das parcerias mais importantes da ciência mundial.

Na época, uma verdadeira revolução transformava a ciência, que colhia os frutos de uma sociedade voltada para o experimentalismo. Os raios X haviam sido descobertos recentemente, e a química e a física estavam em franca expansão. Nesse contexto, Marie encontrou o terreno perfeito para se dedicar ao estudo de novos materiais, que se tornariam um dos pilares da ciência moderna.

Casou-se com Pierre em 1895 e, com ele ; já professor de física da Univesidade de Paris ;, Marie direcionou seus estudos para uma área ainda desconhecida, os raios de urânio. Os estudos resultaram na descoberta da radiotividade, que mudou a maneira como a ciência encara os compostos químicos e deu ao casal o Prêmio Nobel de Física de 1903, dividido com Antoine Henri Becquerel.

Graças à descoberta de Marie e Pierre, hoje vários tratamentos contra o câncer são possíveis, usinas produzem eletricidade para períodos de estiagem e naves conseguem visitar o espaço. ;Seu trabalho não só influenciou o desenvolvimento da ciência fundamental, mas também marcou o início de uma nova era na investigação médica e de tratamentos médicos;, afirma o pesquisador Roberto Vicente, da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen). ;Para se ter uma idéia da importância da descoberta, foi ela que possibilitou Rutherford criar o modelo atômico da estrutura do átomo, com um núcleo com carga positiva concentrando toda a massa rodeado por uma nuvem de elétrons. Isso é o que se aprende no ensino médio até hoje;, exemplifica Vicente.

Elementos
Com a morte do marido, em 1906, Marie se viu sozinha para manter a família e seguir com a carreira de cientista. Mesmo enfrentando o ambiente machista do mundo científico, conseguiu assumir a vaga de professora da Universidade de Paris deixada por Pierre e continuou os estudos sobre novos compostos químicos. Dessa forma, descobriu dois novos elementos: o polônio, batizado dessa forma em homenagem ao país onde nasceu, e o rádio, que conseguiu isolar e estudar mais profundamente.


A pesquisadora decidiu não patentear o rádio para que toda a comunidade científica pudesse pesquisá-lo livremente. As duas descobertas lhe renderam, em 1911, um segundo Nobel, desta vez de Química, tornando-a a primeira mulher a receber a honraria sozinha, além de o único cientista até hoje a conquistar duas vezes a premiação. O Nobel veio no mesmo ano em que a Academia Francesa de Ciência recusou-se a aceitá-la como membro.


Agulhas, tubos e placas de rádio passaram a ser utilizados em terapias médicas. O elemento também serviu de matéria prima para uma vasta gama de equipamentos que vão desde para-raios a detetores de fumaça. Até hoje, o estudo de fósseis utiliza o rádio como elemento para datação e classificação. Já o polônio foi o combustível que permitiu às espaçonaves Apollo, produzidas pela Nasa décadas depois, levarem o homem à Lua e possibilitou o aprimoramento das fitas K7 e dos filmes fotográficos.

Ironicamente, foram os estudos que levaram Marie à morte. Em 1934, ela sucumbiu à leucemia provocada pela constante exposição à radioatividade. Antes de morrer, a pesquisadora deixou uma sucessora: sua filha mais velha. Ir;ne Curie continuou o trabalho da mãe, pelo qual recebeu Nobel de Química em 1935, ao comprovar a existência dos nêutrons.

Mais do que uma pesquisadora brilhante, Marie Curie entrou para a história como uma pioneira e desbravadora da ciência moderna. Para Giovana Pasqualini, pesquisadora do Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo, o pioneirismo de Marie representou um dos passos mais importantes para a abertura da ciência às mulheres. ;Histórias como a dela incentivaram uma geração de mulheres que, aos poucos, foram cavando um espaço maior em várias áreas, inclusive na academia;, opina. ;Se hoje o Brasil caminha para ter mais mulheres que homens na pesquisa, é porque no passado mulheres como ela abriram o caminho;, completa, referindo-se ao censo do Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Tecnológica (CNPq), que constatou que no país 49% dos cientistas são mulheres. ;De forma discreta e perseverante, ela se tornou uma heroína sem par e é um exemplo para mulheres e homens, da ciência ou não. Seu trabalho revolucionário, num ambiente tão hostil às mulheres, numa sociedade tão preconceituosa como a daquela época, ganha, por causa disso, uma dimensão ainda maior;, completa o pesquisador Roberto Vicente.



MULHERES LAUREADAS
Confira as vencedoras do Prêmio Nobel nas áreas de ciência.


FÍSICA
1903 ; Marie Curie (Polônia)
Motivação: Pela descoberta da radiotividade.

1963 ; Maria Goeppert Mayer (Polônia)
Motivação: Por suas descobertas sobre a estrutura do escudo nuclear.

QUÍMICA
1911 ; Marie Curie (Polônia)
Motivação: Em reconhecimento pelo seu trabalho para o avanço da química, pela descoberta dos elementos químicos Rádio e Polônio, bem como pelo isolamentro do Rádio e estudo da natureza dos compostos formados por este elemento.

1935 ; Ir;ne Joliot-Curie (França)
Motivação: Em reconhecimento na síntese de novos elementos radioativos e pela descrição do nêutron.

1964 ; Dorothy Crowfoot Hodgkin (Egito)
Motivação: Por sua determinação, através de técnicas de raios-X , estrutura de substâncias bioquímicas importantes.

2009 ; Ada Yonath E. (Israel)
Motivação: Para os estudos da estrutura e função do ribossomo.

MEDICINA
1947 ; Gerty Theresa Cori (Rep. Tcheca)
Motivação: Por sua descoberta do curso da conversão catalítica do glicogênio.

1977 ; Rosalyn Yalow (EUA)
Motivação: "para o desenvolvimento do radioimunoensaio de hormônios peptídicos"

1983 ; Barbara McClintock (EUA)
Motivação: Por sua descoberta dos elementos genéticos móveis.

1988 ; Gertrude B. Elion (EUA)
Motivação: Por suas descobertas de princípios importantes para o tratamento de drogas.

1995 ; Nüsslein Christiane Volhard (Alemanha)
Motivação: Por suas descobertas sobre o controle genético do desenvolvimento embrionário precoce.

2004 ; Linda B. Buck (EUA)
Motivação: Por suas descobertas de receptores olfativos e a organização do sistema olfativo.

2008 ; Françoise Barré-Sinoussi (França)
Motivação: Por sua descoberta do vírus da imunodeficiência humana.

2009 ; Carol W. Greider (EUA) e Elizabeth Blackburn H. (Austrália)
Motivação: Para a descoberta de como os cromossomos são protegidos por telômeros e a enzima telomerase.

Fonte: Fundação Nobel

Confira entrevista com o pesquisador Roberto Vicente, do Conselho Nacional de Energia Nuclear

- Que tipo de mudanças para a ciência a descoberta da radioatividade trouxe?
A descoberta da radioatividade e, principalmente, das partículas e radiações emitidas no processo de decaimento radioativo forneceu à Ciência a ferramenta para investigar o interior dos átomos e do núcleo atômico. Uma década depois do trabalho pioneiro do casal Curie, um experimento realizado no laboratório de Rutherford, em que uma fina folha de ouro é bombardeada com partículas alfa emitidas por uma fonte radioativa, deu resultados que permitiram a Rutherford (1) criar o modelo atômico que estabeleceu a estrutura do átomo como um núcleo com carga positiva concentrando toda a massa do átomo, rodeado por uma nuvem de elétrons. Isso é o que se aprende no ensino médio até hoje.
Nas décadas seguintes, a mesma idéia básica de bombardear a matéria com as radiações corpusculares emitidas pelos materiais radioativos levou às reações nucleares de transmutação, à criação de substâncias radioativas artificiais e à fissão nuclear.
(1) E. Rutherford. The Scattering of ; and ; Particles by Matter and the Structure of the Atom. May 1911, Philos. Mag, 21:669-688,


Outras áreas da sociedade também foram beneficiadas por esta descoberta?

Embora, neste aspecto, não tenham tido um impacto tão grande quanto os raios-X, as substâncias radioativas se tornaram, rapidamente, uma ferramenta da medicina. Ainda que com grande dificuldade por causa do preço elevado, as fontes de rádio passaram a fazer parte do equipamento hospitalar até quase o final do Século XX. É de 1901 a primeira tentativa de uso terapêutico do rádio em braquiterapia, por sugestão dos Curie para o Dr. Henri-Alexander Danlos, um médico dermatologista do Hospital São Luis de Paris. É de 1903 o relato do primeiro tratamento de linfomas com radiação. Somente nas últimas décadas do século passado, as fontes de braquiterapia com rádio passaram a ser substituídas por fontes de Estrôncio-90, Iodo-125, Irídio-192, entre outras.
Aos poucos, outras áreas ganharam os benefícios da radioatividade. Um exemplo interessante é o uso de rádio para a fabricação de tintas luminosas. A mistura de uma substância radioativa com uma substância fluorescente ou fosforescente cria uma fonte de luz ;eterna;. Mostradores de relógio, bússolas e os painéis dos aviões da Primeira Guerra Mundial pintados com tinta a base de rádio brilharão no escuro por ainda muitos milênios.

Em sua opinião Marie Curie contribuiu para a democratização do fazer ciência, abrindo espaço também para mulheres na pesquisa?
A leitura da biografia de Marie Sklodowska Curie é emocionante. De forma discreta e perseverante, ela se tornou uma heroína sem par e é um exemplo para mulheres e homens, da ciência ou não. (Sugiro a leitura de ;Marie Curie and the science of radioactivity;, disponível em ). Seu trabalho revolucionário, num ambiente tão hostil às mulheres, numa sociedade tão preconceituosa como a daquela época, ganha, por causa disso, uma dimensão ainda maior. Somente se pode apreciar, verdadeiramente, a grandeza da sua realização conhecendo as dificuldades por que passou para alcançá-la.


Marie Curie também é responsável pela descoberta do Polônio e do Rádio. Explique um pouco as aplicações destes elementos atualmente...
Com a facilidade que se tem hoje de produzir substâncias radioativas artificiais, em reatores e aceleradores de partículas, os radioisótopos naturais deixaram de ter a importância que tiveram ao longo do Século XX. As agulhas, tubos, placas e botões de Rádio-226 que eram utilizadas na braquiterapia, assim como as plaquinhas que eram utilizadas em pára-raios radioativos e detectores de fumaça, estão sendo recolhidas como rejeito radioativo.
As fontes de Polônio-210 que eram utilizadas em eliminadores de estática em fábricas de fitas magnéticas, filmes fotográficos e até em escovas para remover a poeira dos discos de vinil, já não tem tanto mercado.
Missões iniciais russas à Lua levaram fontes de Po-210 como fonte de energia para manter os circuitos eletrônicos aquecidos.
Câmaras de nuvens que são uma ferramenta educacional muito interessante em laboratórios escolares ainda vêm equipadas como uma fonte de Po-210, cuja emissão alfa produz magníficos traços.
Devido à intensa e exclusiva emissão de radiação alfa, por unidade de massa, o Polônio-210 é um veneno potente e muito difícil de ser detectado. Os assassinatos dos ex-agentes da KGB na Rússia e em Londres que tiveram tanto destaque na mídia há poucos anos, foram cometidos com ele. ntre muitas outras utilidades, o rádio continua a ser ferramenta da ciência, como indicador cronológico de fenômenos geoquímicos do passado.

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