Paloma Oliveto
postado em 04/02/2011 08:00
Quando as revistas especializadas Nature e Science anunciaram, em fevereiro de 2001, o sequenciamento do genoma humano, criou-se no mundo todo a expectativa de que, a partir daí, a medicina conseguiria consertar todos os defeitos genéticos que levam a uma infinidade de doenças. Uma década depois, a confiança exagerada mostrou-se descabida. Mas, mesmo longe de ser a panaceia alardeada, a decodificação dos hieróglifos da vida ; um emaranhado de letrinhas que representam as bases químicas do organismo ; revolucionou a ciência. Embora muitas pessoas pareçam decepcionadas com as aplicações clínicas do genoma, nos laboratórios, os últimos 10 anos foram de descobertas que, um dia, podem levar à cura de males tão diferentes como o câncer e o mal de Alzheimer.Em comemoração aos 10 anos da publicação da conclusão do Projeto Genoma Humano, a revista Science começa a publicar, nesta semana, uma série de artigos sobre os avanços e os desafios na área. Especialistas renomados foram convidados a analisar o que, de fato, significou essa década. Aos descrentes, os cientistas garantem: as aplicações médicas decorrentes da análise genética já são uma realidade.
;Rostos verdadeiros aparecem agora para demonstrar o valor medicinal da compreensão do sequenciamento genético;, diz ao periódico científico o diretor do Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos, Francis S. Collins. Como exemplo, ele menciona a história de Nic Volker, um garoto de 6 anos de idade que desenvolveu um tipo de inflamação intestinal antes de seu segundo aniversário. ;Múltiplas fístulas apareceram no órgão, fazendo com que Nic não conseguisse comer normalmente;, conta Collins, que esteve à frente das pesquisas de sequenciamento como diretor do Instituto Nacional de Pesquisa sobre o Genoma Humano.
Mesmo depois de diversos exames e mais de 100 cirurgias, os médicos não haviam chegado a um diagnóstico. O martírio de Nic só cessou depois que uma equipe do Medical College of Wisconsin examinou as regiões onde as proteínas eram decodificadas em cada gene do organismo do menino. Eles, então, identificaram uma mutação jamais associada a problemas intestinais. Anteriormente, a variante havia sido ligada a distúrbios sanguíneos que podem ser curados por meio do transplante de medula óssea. ;A equipe médica levantou a possibilidade de um transplante, o que não seria considerado sem um diagnóstico firme;, lembra Collins.
O procedimento ocorreu em julho do ano passado. Os médicos usaram células-tronco do cordão umbilical de um doador saudável. O caso, acredita-se, foi o primeiro no mundo no qual o sequenciamento do DNA de um paciente levou ao diagnóstico e ao tratamento. ;Isso demonstra que a tecnologia pode começar a ser usada clinicamente hoje em dia;, analisa em entrevista ao Correio um dos autores do estudo, Howard Jacob, diretor do Medical College;s Human and Molecular Genetics Center. ;Todo mundo fala sobre a medicina personalizada, e agora temos um exemplo real;, completa.
Medicina a distância
Outra vitória clínica do sequenciamento genético foi obtida por uma equipe de cientistas da Universidade de Yale. Há dois anos, eles conseguiram diagnosticar e tratar um bebê a milhares de quilômetros ; a criança estava na Turquia ;, a partir da análise do genoma. A abordagem que usaram é chamada de sequenciamento total do exoma, a parte do genoma que contém os códigos proteicos. ;Essa metodologia tem potencial para levar a dramáticas descobertas sobre cada tipo de doença humana e, à medida que o preço da tecnologia decai, ela será comumente utilizada na medicina;, afirma ao Correio Richard Lifton, o principal autor do estudo, que foi publicado na revista especializada PloS.
A equipe de Yale foi procurada por um médico turco que cuidava do caso de uma criança de apenas 5 meses. O menino sofria da síndrome de Bartter, uma doença rara que provoca perda de sal, potássio e água nos rins. Depois de analisar os 34 milhões de pares do genoma da criança, os investigadores descobriram uma mutação nas duas cópias de um gene conhecido por causar diarreia clórida-congênita, também uma doença rara na qual o trato gastrointestinal falha ao tentar absorver água e cloretos. Cinco pacientes portadores de Bartter foram examinados pela equipe de Yale, que confirmou a presença da mutação. ;Nós demonstramos a utilidade clínica do sequenciamento genético;, comemora Lifton.
Além de casos de pacientes específicos, o sequenciamento genético tem sido a principal ferramenta de cientistas que, em laboratório, buscam a causa, o tratamento e a cura de doenças que, até agora, desafiam a medicina. Nessa linha, um dos resultados mais promissores foi obtido por pesquisadores do Instituto Wellcome Trust Sanger, na Inglaterra. Eles sequenciaram todo o genoma de células cancerígenas extraídas de dois pacientes e também de tecidos saudáveis extraídos das mesmas pessoas.
Ao compará-las, os pesquisadores catalogaram as mutações encontradas apenas nos tecidos tumorais. Com isso, foi possível reconstruir a ;história biológica; celular e descobrir como, ao longo do tempo, as estruturas vão se modificando até se tornar maléficas. ;Foi um momento fundamental para a história da pesquisa sobre o câncer;, garante à reportagem o cofundador do projeto genoma do Wellcome Trust Sanger, Mike Stratton. Apesar de o estudo ainda ser preliminar, o pesquisador acredita que ele forneceu novas ideias sobre as causas biológicas do câncer, um marco na direção de terapias personalizadas e nas estratégias de prevenção.
Reconhecendo os muitos desafios que a ciência e a medicina têm pela frente antes que o sequenciamento genético torne-se, de fato, o elixir que se espera, Francis S. Collins é bastante otimista. ;Esses casos bem-sucedidos provam que benefícios médicos que um dia foram considerados hipotéticos estão se tornando realidade. Essa transição vai requerer muito trabalho. Minha esperança é que, ao celebramos o 20; aniversário do sequenciamento genético humano, possamos ver um mundo repleto de pessoas cuja saúde melhorou graças à técnica;, escreveu, na Science.
Etapas da descoberta
As primeiras discussões sobre o Projeto Genoma Humano tiveram início na década de 1980, mas ele só foi fundado em 1990. O primeiro esboço do projeto saiu em 1999, mas ainda havia muito a ser descoberto. Dois anos depois, o consórcio de pesquisadores, de todas as partes do mundo, publicou na Nature e na Science artigos descrevendo o sequenciamento de mais de 90% do genoma do homem. O projeto encerrou em 2003, com 99,9% do genoma revelado.
A primeira década pós-genômica
O Projeto Genoma Humano completou a sua primeira década de existência e os resultados obtidos merecem comemoração. Nos últimos 10 anos, graças aos resultados das pesquisas internacionais, foram feitas conquistas históricas: o mundo assistiu ao anúncio do sequenciamento completo do genoma de uma pessoa, o desenvolvimento tecnológico possibilitou agilizar o processo de sequenciamento do genoma por meio do uso de softwares capazes de descrever em poucos dias o genótipo de um indivíduo, ocorreram avanços no conhecimento sobre as funções biológicas dos genes e aumentou a quantidade de sequenciamentos completos de genomas pertencentes a diferentes espécies. Os resultados alcançados pelo bilionário Projeto Genoma têm sido compartilhados em artigos publicados em notórios periódicos científicos, como Nature e Science.
Apesar dessas conquistas, os resultados do Projeto Genoma Humano ainda não foram suficientes para um grande avanço no desenvolvimento de tratamentos ou mesmo na cura de doenças. Um editorial do periódico The Lancet publicado em 2010 revela que os benefícios clínicos derivados do Projeto Genoma ainda são escassos, mas alguns progressos já ocorreram, por exemplo, no desenvolvimento de medicamentos para alguns tipos de cânceres e doenças hereditárias. Uma meta atual dos pesquisadores é a de compreender o funcionamento biológico dos genes e a sua relação com a produção de doenças. Os países ricos têm se destacado nessa etapa da pesquisa genômica em virtude da infraestrutura disponível, como o uso de sequenciadores que possibilitam descrever o genoma de várias espécies de mamíferos e desenvolver posteriores estudos comparativos.
No Brasil, as pesquisas sobre o genoma humano carecem de investimentos em infraestrutura para avançarem no diálogo internacional. As discussões sobre o impacto ético do acesso à informação genética são outro tema a ser pautado com urgência nacionalmente. Na última década, por exemplo, os Estados Unidos destinaram de 3% a 5% dos recursos do Projeto Genoma Humano para pesquisas sociais e éticas sobre o tema. A ampliação do intercâmbio científico internacional e a democratização do acesso aos resultados e recursos necessários à pesquisa são um desafio mundial que determinará os rumos da segunda década pós-genômica.
Cristiano Guedes é professor da Universidade de Brasília e pesquisador do Anis ; Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.