Ciência e Saúde

Abadia de Goiás abriga há 24 anos lixo radioativo do desastre com césio 137

Depois de enfrentar protestos, a Comissão Nacional de Energia Nuclear ganhou o apoio da população e garante que o depósito não oferece riscos

Renato Alves
postado em 18/03/2011 07:00
Depois de enfrentar protestos, a Comissão Nacional de Energia Nuclear ganhou o apoio da população e garante que o depósito não oferece riscosAlém de permanecer o máximo de tempo em casa, as 140 mil pessoas que ainda moram perto da usina de Fukushima são aconselhadas pelo governo japonês a guardarem em sacos de lixo todas as roupas usadas fora da residência. Possivelmente contaminadas pela radiação que vaza dos reatores há uma semana, desde o terremoto e o tsunami no nordeste do Japão, as peças deverão ser acondicionadas em um local totalmente fechado. Quando e de que forma isso ocorrerá, é uma preocupação secundária, pois os técnicos ainda lutam para evitar um vazamento maior e uma tragédia nuclear. Mas, em um futuro próximo, os japoneses conviverão com uma realidade enfrentada por goianos há 24 anos, desde o acidente com o césio 137, que causou mais de 60 mortes, deixou sequelas em outras 800 e continua a fazer vítimas no estado vizinho do Distrito Federal.

As 6 mil toneladas de lixo radioativo recolhido das áreas contaminadas pelo césio 137 na capital goiana estão depositadas em Abadia de Goiás. A cidade de 6,5 mil habitantes, distante 13km de Goiânia, começou a receber os rejeitos em 29 de setembro de 1987, 16 dias após o início do acidente. Os técnicos responsáveis pela segurança do depósito garantem que nada vazou nesses quase 24 anos e até o que se planta no terreno pode ser consumido. Prova disso é que eles e os demais funcionários comem as hortaliças cultivadas nos fundos dos prédios da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen), erguidos no local.

Apesar do preconceito do qual a cidade e seus moradores acabaram vítimas em função dos rejeitos do césio, a maior parte da população defende o trabalho feito pelos técnicos da Cnen. Tanto que convivem com o símbolo da radioatividade na bandeira do município. Os elementos que a compõem foram escolhidos em consulta popular. Houve até concursos nas escolas da região. A cidade, em 1987 limitada a um povoado, conseguiu a emancipação em 1995 por ser responsável pela segurança do lixo atômico.

Preconceito
No entanto, se duas décadas depois a população não tem medo da proximidade com os rejeitos, o fim dos anos 1980 ficou marcado por pânico e manifestações contrárias à manutenção do lixo radioativo no local. O material coletado na descontaminação foi levado para onde hoje é o Parque Estadual Telma Ortegal. A reserva ambiental do município virou depósito definitivo dos restos do desastre. Os 14 contêineres usados para abrigar o material radioativo foram enterrados em dois pontos diferentes dos 32 alqueires do parque, em salões cercados com placas de concreto com até 25cm de espessura (veja arte). Dentro deles, há 1,2 mil caixas e 2,9 mil tambores.

Passados 20 anos desde a tragédia do césio, os moradores mais antigos de Abadia lembram-se do contraste entre o pânico vivido na época da contaminação e a calmaria de hoje. O bancário Raimundo Soares da Silva, 48 anos, tinha 14 ao participar do movimento contrário à instalação dos depósitos do lixo radioativo. ;Fui com amigos e parentes para a rua, com cartazes. Não aceitávamos receber o lixo. Havia muita desinformação, medo;, conta. Ele também se lembra da discriminação sofrida pelo povo de Abadia. ;Tinha gente que escondia a placa do carro quando ia para outro lugar. Se não fizesse isso, tinha que conviver com gente apontado para o carro e para a pessoa, como se fosse bicho;, recorda.

Monitoramento
A estimativa dos especialistas é que o material continuará capaz de causar danos ao meio ambiente até 2187. Eles levam em conta a vida útil do césio e as condições do armazenamento do lixo radioativo. A Cnen tem obrigação de monitorar o lugar. ;Trimestralmente, fazemos coleta e análise na fauna, na flora, no solo e no lençol freático. Essa pesquisa resulta em um relatório anual, enviado a órgãos como Ibama e Ministério Público. Nunca constatamos vazamento ou anomalia nem tivemos nosso trabalho contestado;, afirma Leonardo Bastos Lage, servidor da Cnen e coordenador do Centro Regional de Ciências Nucleares do Centro-Oeste (CRCN-CO), instalado no Parque Telma Ortegal.

Para tranquilizar a população e informar sobre o controle da radiação, o CRCN abriu as portas em 2005. Desde então, mais de 10 mil pessoas assistiram a palestras e andaram sobre o depósito do lixo atômico. A maioria é criança e adolescente, estudantes dos ensinos fundamental e médio. ;A título de comparação, Chernobyl tem um acesso restrito a pessoas autorizadas e os visitantes só podem ficar alguns minutos, por causa da grande radiação ainda existente e da falta de segurança. Lá, vazou radiação de um reator, que teve de ser todo coberto, isolado;, ressalta Lage.

Enquanto cresce ao redor dos rejeitos, Abadia de Goiás tem apenas uma certeza: a de que jamais se desvencilhará da história da radiação do césio 137. O tema radioatividade até faz parte do currículo escolar local. E aparece com frequência nos debates em sala de aula, principalmente a partir do ensino médio. Para os alunos mais novos, o pó de brilho azulado que vazou de um equipamento hospitalar é cercado de mistério.


Elementos
Entre os elementos mais comuns no vazamento de vapor de água do reator japonês estão o iodo 131, o xenônio 133, o xenônio 135, o criptônio 85 e o césio 137. Esse último, o mesmo do acidente ocorrido em Goiânia há 24 anos e que até hoje faz vítimas


Explosão
Em 26 de abril de 1986, na antiga União Soviética, onde hoje é território da Ucrânia, ocorreu o acidente nuclear de Chernobyl, o maior da história. Um reator da central explodiu e liberou uma imensa nuvem radioativa contaminando pessoas, animais e o meio ambiente de uma vasta extensão.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação