postado em 12/04/2011 09:26
Desde o começo do século 19, curandeiros brasileiros usam o cozimento de suas folhas para fazer uma infusão milagrosa, segundo a crença popular. Dizem que o chá de suas folhas e um banho impregnado por suas essências curam a lepra e furúnculos, neutralizam o efeito de venenos de picadas de cobras e regulam a temperatura e a pressão do corpo. Ainda hoje, a pata-de-vaca mantém a fama e é possível encontrar ; com facilidade ; em feiras e lojas de produtos naturais recipientes com seus sais poderosos, assim como ocorre com uma infinidade de plantas da farmacopeia brasileira. Já há algum tempo, é referência científica quando se fala em diabetes. É preciso, porém, muito cuidado.Profissionais da área de saúde, sobretudo químicos e farmacêuticos ; que conhecem a maioria de seus compostos e estudam a planta ;, não recomendam a ingestão de seu chá sem a consulta prévia a um médico. ;Pode haver um composto tóxico e, em vez fazer bem, vai fazer mal à pessoa que o ingere;, adverte Cíntia Alves de Matos Silva, doutoranda em farmacologia molecular da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília (FCS/UnB), que desenvolve uma tese inspirada nos poderes curativos da Bauhinia variegata ; nome científico de uma das 300 espécies de pata-de-vaca, ou unha-de-vaca, conhecidas no Brasil.
Cintia é uma das dezenas de pesquisadores no país que esmiuçam os segredos moleculares da planta nativa da China e da Índia. Ela começou a estudar a bauínia há três anos ; em busca de uma molécula que estimule a produção de insulina ;, sob a orientação do professor Francisco de Assis Rocha Neves, coordenador do Departamento de Farmacologia Molecular da FCS/UnB. Rocha Neves, por sua vez, também faz suas advertências em relação ao chá da planta. ;Há estudos que apontam para a existência de compostos na planta responsáveis por ativar receptores que ampliam o risco de cânceres de útero e de mama, por exemplo;, destaca o pesquisador da UnB.
Com reconhecida experiência no meio acadêmico e fama de incansável perseguidor de compostos químicos com potencial para futuros medicamentos fitoterápicos, o professor comenta que o grupo liderado por ele e Cíntia está quebrando a cabeça para encontrar substâncias ativadoras do receptor PPAR-Gama ; que pilota o controle dos níveis de glicose no sangue. ;Estamos perto, sim, já houve avanços significativos na pesquisa, mas não sabemos ainda precisar o tempo de sua conclusão;, acentua Rocha Neves, referindo-se à molécula ideal.
Apesar da postura cautelosa que os cientistas assumem, eles sabem que, hoje, o acesso ao conhecimento da arquitetura dos elementos químicos e a outras ferramentas importantes num laboratório se dá em níveis tão sofisticados que é possível modificar, sem grandes dificuldades, o labirinto molecular dos extratos da planta (de qualquer planta). ;É possível fragmentar esse extrato com maior precisão e purificá-lo ao ponto de eliminar por completo a existência dessas ameaças à saúde;, afirma a pesquisadora.
Em busca do ideal
Rocha Neves é da linha de pesquisadores que acreditam no empenho e na sorte. Ele passou para seus alunos o DNA da crença de que ;toda pesquisa precisa de um pouco de sorte;. Tanto que Cíntia também persevera: ;Creio que já podemos dizer que muito em breve vamos localizar o composto que estimula a ação da insulina e controla os níveis de glicose;, afirma, mas pondera que esta certeza pode ser diluída no tempo em caso de mudança de rumos no estudo ; o que é muito comum nas bancadas da vida.
;Estamos na fase de fragmentação de seus compostos (da pata-de-vaca), mas, se houver um problema com esses elementos, é possível que tenhamos de alterar os métodos de trabalho. É possível que tenhamos de mudar a espécie da planta que pesquisamos, entre outras surpresas, como também é possível que não se trate de um só composto o que buscamos, mas de um conjunto de cinco, 10 que ativem o receptor;, pondera.
Quando o trabalho chega a esse ponto, de fracionamento de compostos, afirma-se que a pesquisa atinge a fase de biomonitoramento, sob a coordenação da professora Dámares Silveira. Durante essa etapa ; precedida de outras que comprovam em ratos a existência de substâncias no chá da planta que controlam o nível de glicose ;, colhe-se uma quantidade determinada de folhas de pata-de-vaca, seca-se o material e em seguida obtém-se o seu extrato numa fervura com água a 50;C. ;Não deixamos ir a 100;C para preservar as moléculas;, explica Cintia.
Numa outra sequência de trabalho, filtra-se o extrato, em estado sólido, e seus compostos são analisados em cultura de células. É nesta etapa que se dá com mais visibilidade a orientação de Rocha Neves e onde se inicia a fragmentação dos compostos ou a garimpagem de moléculas que podem ou não atuar no PPAR-Gama. ;Temos de enxergar melhor a estrutura molecular do receptor para ver qual composto se liga a ele e facilita a ação da insulina;, comenta Cíntia.
Muitas vezes, a prática científica acadêmica assume a forma de uma corrida de revezamento ou de um time de futebol em que o resultado final depende um pouco do trabalho de cada um. No caso da pesquisadora da FCS/UnB, os limites de sua investigação vão até a localização do composto ideal para despertar o receptor de glicose; a partir desse ponto, cujas pesquisas envolvem exames de toxicidade, ensaios biológicos, pré-clínicos e clínicos, em humanos, até a obtenção de um medicamento, entra em cena um outro grupo de pesquisadores.
Segundo Cíntia, em geral, demora-se de 15 a 20 anos para se alcançar a produção de uma droga fitoterápica. A família desse tipo de medicamento ocupa um lugar especial na coleção de produtos farmacêuticos, porque os custos de produção são reduzidos e os efeitos colaterais menos danosos à saúde humana. Começa pela fonte coleta do produto, que no caso da UnB é rica em bosques de pata-de-vaca, sobretudo das duas espécies mais usadas em laboratórios, a variegata e a forficata. São as mais pesquisadas no Brasil, por serem as mais ricas em compostos que ativam o receptor da diabetes. Para Cíntia, os fitoterápicos são mais eficazes e mais seguros. ;O que se precisa neste país é apoio à pesquisa e à produção de medicamentos à base de plantas;, sentencia a pesquisadora da UnB.
Belas e resistentes
As bauínias pertencem à família das leguminosas casalpináceas, a mesma do pau-brasil. Espalham-se pela zona tropical do mundo inteiro. Elas são chamadas de pata-de-vaca por causa de seu formato. São plantas que crescem rápido, atingem cerca de 3m em dois anos e se adaptam facilmente em áreas abertas, sob o sol. A altura máxima não ultrapassa os 10m. São originárias da Ásia e quase todas as espécies brasileiras possuem espinho e têm flores brancas e lilás, que chamam a atenção por sua beleza. Entre elas, as mais comuns são a Bauhinia candicans, a Bauhinia forficata e a Bauhinia variegata. As folhas da pata-de-vaca são utilizadas tradicionalmente no Brasil com fins curativos. Pesquisas farmacológicas comprovaram que as espécies variegata e forficata possuem a propriedade de diminuir a taxa de glicose no sangue.