Paloma Oliveto
postado em 13/05/2011 10:00
Henrique VIII casou-se seis vezes, mandou decapitar duas esposas, rompeu com a Igreja Católica, fundou o anglicanismo e morreu obeso, vítima de uma doença até hoje desconhecida. Juntos, os fatos o alçaram ao posto do mais misterioso ; e fascinante ; rei da história da Inglaterra. Do dramaturgo William Shakespeare a cineastas hollywoodianos, não foram poucas as pessoas que tentaram contar a trajetória do monarca da casa dos Tudors. Agora, a biografia de Henrique VIII ganha mais um detalhe, tão curioso quanto os demais. Ele seria portador de uma rara síndrome que afeta o sangue, o cérebro, o sistema nervoso e o coração.Desde a infância, a bioarqueóloga Catrina Banks Whitley era apaixonada pela história dos Tudors. Depois de se especializar na ciência que estuda os restos mortais humanos encontrados em sítios arqueológicos e na paleopatologia, ramo que investiga antigas doenças, ela resolveu decifrar o segredo do rei. Em entrevista ao Correio, a pesquisadora conta que passou um ano discutindo os possíveis males que teriam afetado o monarca com a amiga Kyra Kramer, antropóloga médica e coautora do estudo.
;Pensamos em doenças, problemas reprodutivos e genética;, diz. ;Como grandes fãs do seriado Os Tudors (exibido no Brasil pela tevê paga), frequentemente discutíamos sobre os capítulos. Depois do último episódio da segunda temporada, Kyra me perguntou: ;Por que sempre as pessoas culpam as mulheres pela gravidez malsucedida? Para mim, está claro que quem tinha problemas era Henrique;;, relata.
Naquele semestre, Catrina ministrou aulas de evolução humana, disciplina que aumentou seu contato com a genética, especialmente com o fator Rh, associado à seleção natural e aos abortos espontâneos.
;Esse conhecimento me fez pensar em como a genética de Henrique poderia ter causado a falta de filhos;, conta. Em menos de 24 horas depois da discussão sobre o seriado, a pesquisadora veio com uma teoria: o sangue do rei era Kell positivo, condição que explicaria a incompatibilidade com o tipo sanguíneo das esposas. ;Então, Kyra falou: ;Agora, me conte o que foi que o deixou louco;. Respondi que ele poderia ser portador da síndrome de McLeod.;
Classificado como raro, o distúrbio é causado por mutações no gene XK do cromossomo X, responsável pela produção do antígeno Kell na superfície das células vermelhas.
A síndrome ocorre basicamente em homens e afeta não apenas o sangue, mas causa diversos problemas, como tensão involuntária dos músculos faciais, atrofia muscular, arritmias coronarianas e cardiomiopatia dilatada.
Os sintomas começam a aparecer na idade adulta e caracterizam-se pela mudança abrupta do comportamento, como ansiedade e depressão, podendo inclusive alterar a personalidade do portador. Com o passar dos anos, a tendência é o agravamento do quadro.
Mudança aos 40
De acordo com os principais biógrafos do rei, foi isso que aconteceu com o monarca. Se, na juventude, era considerado um jovem fanfarrão, mas também culto e interessado em teologia, aos 40 anos, completados em 1531, o rei começou a mudar. Antes dessa época, seus desafetos eram, no máximo, exilados. Mas ao alcançar essa idade, o Tudor passou a mandar executar qualquer pessoa cujas opiniões estavam em desacordo com as dele. Henrique VIII tornou-se paranoico e acreditava que quase todos tramavam contra ele. Chegou a crer que o grande amor de sua vida, Ana Bolena, o traía com Herny Norris, amigo de três décadas do rei, a quem mandou matar.
;Em seguida, houve a matança de seus parentes maternos, incluindo um primo que tinha crescido com ele na casa real, com quem compartilhou o quarto quando eram meninos. Foi o equivalente a matar um irmão;, relata Catrina. ;Durante os cinco últimos anos de sua vida, ele constantemente preparava armadilhas para seus cortesãos e ministros caírem, incluindo um famoso incidente com Kateryn Parr. Ele chegou a ser saudado como um ;amante da justiça e da bondade;, mas, na ocasião de sua morte, era considerado um tirano errático;, diz a pesquisadora.
Segundo o historiador David Starkey, especialista nos Tudor, havia ;dois Henriques, o velho e o jovem;. O jovem era bonito, generoso, adorava esportes, música e venerava Catarina de Aragão. O velho quase não podia andar de tanta dor na perna ; aliás, o primeiro sintoma da síndrome de McLeod ;, alimentava ódios imaginários e colocou em risco a estabilidade de seu reino para casar com a amante.
Por muitos anos, os historiadores têm debatido teorias sobre doenças que possam ter explicado o declínio físico e mental de Henrique VIII, além do comportamento tirânico que caracterizou seus 40 anos de idade. Já se sugeriu que ele poderia ter desenvolvido diabetes tipo 2, principalmente por causa da súbita obesidade. ;Mas essa doença não explicaria as mudanças de personalidade;, responde Catrina. Além disso, o diabetes poderia torná-lo infértil, o que não ocorreu. Henrique VIII engravidou suas esposas diversas vezes. O problema é que as gestações não iam adiante. ;Há muitos debates sobre a loucura de Henrique VIII. Mas pouco se fala sobre as gestações malsucedidas de suas mulheres;, argumenta.
Filhos perdidos
De fato, depois de um aborto e de um bebê que viveu pouco mais de um mês, Catarina de Aragão e Henrique VIII chegaram a ter uma criança saudável. Mas era uma menina, chamada Maria, o que, para a linha sucessória, não adiantava nada. Segundo Catrina, em cada gravidez, há uma chance de 50% de a criança ser Kell negativa. ;Maria pode ter tido sorte, herdando o sangue tipo negativo. Se foi assim, os anticorpos de Catarina não considerariam o sangue do feto como um corpo estranho que precisava ser atacado.
Dessa forma, a gravidez pode ter progredido normalmente, resultando em uma criança saudável;, justifica. Para a pesquisadora, se tivessem tentado mais vezes, talvez Henrique e Catarina conseguiriam dar à luz o sucessor do trono. Depois de Maria, o casal perdeu mais quatro crianças.
Do controverso casamento com a amante Ana Bolena, graças a quem Henrique VIII fundou o anglicanismo, nasceu um bebê saudável. Mais uma vez, uma menina. A irmã de Ana também havia sido amante do rei, com quem teve dois filhos, sendo um deles o sonhado herdeiro do sexo masculino. Porém, como o relacionamento era extraconjugal, as crianças não puderam ser reconhecidas. Henrique viu em Ana a esperança de ganhar um menino legítimo, que o sucederia na dinastia Tudor. O fim da história é conhecido: depois de diversos abortos espontâneos, a rainha foi acusada de traição e morreu decapitada.
O filho homem só viria do casamento com Joana Seymour, dama de companhia de Ana Bolena que se tornou amante do rei. No ano seguinte, a nova rainha deu à luz o príncipe Eduardo. O varão custou a vida de Joana, que morreu pouco depois do parto. Henrique VIII ainda se casou mais duas vezes, mas não teve mais filhos.
Para Catrina Whitley, somente uma doença rara com graves implicações para a saúde mental poderia explicar a súbita transformação do rei. ;Ele não apenas se tornou irritável ou ficou com pavio curto. Henrique VIII tornou-se paranoico e irracional;, argumenta.
Apesar de todos os indícios, somente um teste de DNA poderia confirmar a suspeita de Catrina. Mas a exumação dos restos mortais do rei não está nos planos da monarquia da Inglaterra.
;É uma teoria bastante interessante, mas, sem evidências genéticas, não temos como saber se está correta;, disse ao Correio Retha Warnicke, historiadora da Universidade do Arizona e autora de uma biografia de Ana Bolena.
;Outras condições poderiam explicar o temperamento do rei. Ele pode ter ficado demente, por exemplo. Mas ;pode; é a questão. Embora a teoria da doença rara seja possivelmente verdadeira, não há como prová-la;, alerta.
Incompatibilidade
Além do Rh, existem outras substâncias nas hemácias que podem ser incompatíveis durante os cruzamentos das espécies. Um deles é o antígeno Kell. Quando a mulher é Kell negativo e o homem é positivo, a criança pode herdar a característica do pai. Nesse caso, o organismo da gestante enxerga o feto como um ser intruso e produz anticorpos para expulsá-lo.