Ciência e Saúde

Estudo mostra como alunos e residentes de medicina sofrem na profissão

postado em 22/05/2011 18:57
;Quando entramos em contato com os pacientes, percebemos que não sabemos muita coisa. O pior é que ele te chama de doutor, te pede um remédio e você não sabe o que fazer. Isso é frustrante;, desabafa Mário Nóbrega, 23 anos, no sexto semestre de medicina. O rapaz, que decidiu pela profissão já no ensino médio, influenciado pelos seriados de tevê, hoje divide-se entre a paixão pela medicina e as condições precárias da saúde pública. Um capítulo desse vaivém emocional é retratado na tese de doutorado do psiquiatra e psicanalista Luciano Souza, intitulada Prevalência de sintomas depressivos, ansiosos e estresse em acadêmicos de medicina e apresentada na Universidade de São Paulo (USP).

Realizado com 359 alunos do primeiro ao sexto ano da Universidade Federal do Paraná (UFPR), o estudo analisou, por meio de uma escala de depressão, o comportamento dos estudantes desde a aprovação no vestibular até a formatura. Segundo o médico, a experiência pré-vestibular ; etapa com seletiva muito concorrida ; dá ao aluno a falsa segurança de que, como conseguiu passar, está completamente preparado para o curso superior. ;Não existe a possibilidade de se saber tudo, é impossível, inviável;, acredita Souza. O estudante Mário Nóbrega concorda. Ele afirma que o vestibular tem uma influência tão grande no aluno de medicina que, após ;vencer; o desafio, ele acredita que nunca mais se preocupará com provas. ;A sensação é a de ;Já fiz minha parte e o resto é lucro;;, observa.

O psiquiatra observou que o terceiro e o sexto ano foram os que apresentaram maiores escores de depressão e até de sentimento de luto ; 90% dos pesquisados registraram algum grau dessas sensações. No terceiro ano, início do ciclo profissionalizante, o problema está relacionado ao primeiro contato com os pacientes. ;Quando o aluno depara-se com as dificuldades inerentes a esse contato, perde o ideal de ajudar o próximo, cujo sentimento correspondente é o luto;, explica. Para ele, por esse sentimento ser uma reação natural e universal, é importante mostrar que essa é uma situação comum e que nem sempre é possível ajudar as pessoas como anteriormente se imaginava.

Nóbrega considera que, como o aluno estava acostumado só com a teoria, quando percebe que nem mesmo todo o estudo é suficiente para enfrentar sem hesitação os enormes desafios representados por aqueles primeiros pacientes ansiosos, ele não sabe o que fazer e se frustra. ;O acompanhante te olha como se você pudesse fazer alguma coisa e não quisesse;, diz. Por outro lado, analisa, a experiência proporciona aprendizados que não estão nos livros, como a de se fazer confiar e a de desenvolver a sensibilidade para entender o que está ocorrendo por meio do olhar ou do gesto.

Já no sexto ano, é a realidade, nua e crua, que ;assusta; os alunos. O estudante Eduardo Milhomem, 27 anos, no 5; ano (fim do ciclo profissionalizante) de medicina, explica que, nessa época, o aluno passa a fazer parte da rotina clínica e, apesar de estar no fim do curso e já atender pacientes, ainda não tem a segurança e o conhecimento necessário para tratar a pessoa sozinho. ;Para alguns, essa etapa assusta. Para mim, é um estímulo a mais;, diz.

O choque
Frente às mudanças de percepção geradas pelos impactos da ;vida real;, o processo de especialização pode contribuir ainda mais para a perda do ideal ou, até mesmo, para frustrar o aluno, considerado o estado da saúde pública brasileira. ;Hoje, o ideal de ser médico encontra uma realidade totalmente adversa;, observa o pesquisador. Realidade vivida atualmente pelo residente de ginecologia e obstetrícia Leonardo Esteves, que atribui o estresse físico e intelectual às longas jornadas de ensino e às condições inadequadas das instituições de ensino.

Segundo ele, a realidade é formada, na maioria das vezes, por unidades hospitalares precárias e mal administradas; pronto-socorros lotados; falta de insumos hospitalares e de profissionais capacitados; baixos salários e uma gestão pública que deixa a desejar na maior parte dos hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS). ;O cenário lembra um campo de batalha. Talvez esse quadro revele os sintomas depressivos;, opina o residente.

Para Esteves, que também é presidente da Associação Brasileira dos Médicos Residentes (Abramer), a situação se agrava quando alguns médicos servidores, que deveriam supervisionar o atendimento dos residentes, deixam de fazer o seu trabalho. ;Muitas vezes, nós, residentes, atendemos sozinhos e sem acompanhamento;, acusa. ;O residente vive em estado de humor extremo, entre a euforia de uma conquista profissional, a decepção das altas jornadas de ensino e a má gestão da saúde pública;, salienta.

Ele considera a situação quase como de ;exploração profissional;, com os residentes usados como ;mão de obra barata; e como substitutos para o trabalho dos médicos formados. ;Somos ameaçados de não entrars em procedimentos cirúrgicos caso não atendamos as fichas dos pronto-socorros;, ressalta.

Já para a também residente em ginecologia e obstetrícia Cláudia Simon, a dura rotina do médico cria os problemas emocionais. ;Um médico dorme pouco, se alimenta de forma inadequada, não consegue ter regularidade na prática de uma atividade física, é privado de eventos sociais por plantões e trabalho;, ressalta, relacionando esse estilo de vida como um empecilho para a boa prática da atividade médica.

Percepção

Para a residente do primeiro ano de pediatria Fabiana de Luccas, lidar com o ser humano é algo complexo, ainda mais durante um período de fragilidade, como é o da doença. ;Lidamos com expectativas e sentimentos, com os contextos social e familiar. Esses fatores são pouco abordados durante a formação médica, gerando frustrações nos alunos;, contextualiza. A residente, que diz ter escolhido a profissão ;aos 4 anos;, considera a pediatria uma profissão gratificante, pois envolve uma fase importante da vida, a fase de crescimento e desenvolvimento. Mas faz uma ressalva: ;Uma criança sorrindo e brincando satisfaz, mas envolve dificuldades, pois quando o resultado é desfavorável a aceitação é difícil;.

Cláudia Simon afirma não se arrepender da escolha. ;Hoje me questiono por que demorei tanto para me decidir pela especialidade. Amo o que faço;, afirma. Ela diz ter uma visão mais madura da medicina, sem se enxergar mais como uma heroína que, em um passe de mágica, vai mudar a vida do paciente. ;Não depende só de mim. Me vejo como uma profissional apaixonada pelo que faz, que se empenha para aprimorar sempre o conhecimento e para ter uma vida equilibrada para oferecer saúde aos pacientes;, salienta.

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