postado em 23/05/2011 11:03
Em um país que possui taxas de cura de leucemia em crianças e adolescentes muito baixas, semelhantes às de países do Leste Europeu ; em torno de 47%, enquanto várias nações de primeiro mundo se aproximam dos 80% ;, o trabalho da oncologista pediátrica Silvia Brandalise se destaca. Ela comanda um centro de tratamento e pesquisa em neoplasias da infância que é referência na América Latina por ter conquistado índices de 70% de cura. Ao longo de três décadas, ela desenvolveu estudos que se destacaram sobre as várias formas da doença, tanto no Centro Infantil Boldrini quanto na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), como professora. Pesquisou novas formas de diagnóstico, processos de resistência a drogas e sua solução e aperfeiçoou o arsenal de máquinas e equipes ao longo do tempo.O trabalho de Silvia inspira-se no voluntariado, ao tratar 80% das crianças que dependem do Sistema Único de Saúde (SUS), e é movido pela esperança de elevar as taxas de cura. Agora, essa paulistana formada pela Escola Paulista de Medicina (atual Universidade Federal de São Paulo) e dona de uma elevadíssima disposição para perseguir resultados, passa a integrar um grupo de 63 pesquisadoras internacionais, com sede em Paris, reconhecidas pelo trabalho inovador.
Ao grupo Mulheres Unidas pela Inovação em Saúde (With, na sigla em inglês), a brasileira vai levar, como proposta básica, a integração mundial do saber conquistado até hoje sobre tratamento de leucemias. Silvia, que integra outro grupo de pesquisa na Organização Mundial de Saúde (OMS), critica o sistema brasileiro de terapias e cobra mais rigor na fiscalização de clínicas. ;Das cerca de 150 instituições que lidam com a leucemia no Brasil, apenas 30 teriam condições de fazer um bom tratamento;, avalia.
Como está o Brasil no tratamento de leucemia em crianças e adolescentes em comparação com outros países de primeiro mundo?
Acho que, assim como no futebol, o que conta é bola na rede. No caso do câncer infantil, o que importa são os pacientes sem evidências de doenças com mais de cinco ou oito anos, os potencialmente curáveis. Os dados mais recentes, publicados na página do Inca (www.inca.gov.br), com o nome ;O câncer na criança e no adolescente no Brasil;, com registro de base populacional e de mortalidade, de 2008, mostram que a média de sobrevida no Brasil está ao redor de 47%. Isso leva à reflexão sobre o sistema de tratamento da doença, comparando-se o Brasil com os Estados Unidos e a Europa.
Em que sentido?
A grande diferença que vejo entre a Europa e os EUA é que lá (nos EUA, a taxa de cura de leucemia mieloide aguda é de 80%) só se trabalha com ações definidas pelo Instituto Nacional de Saúde (o NIH, na sigla em inglês) por meio de protocolos prospectivos. Eles fazem vistorias locais nas clínicas, existe um banco de dados monitorando as ações e um benefício financeiro para a instituição que atua com gerência de dados. Em razão disso, há ganhos na qualidade de informações e nos tratamentos. Na Europa, na maioria dos países, eles utilizam também a definição sobre quais os centros que podem tratar e quais os que não podem tratar o câncer infantil. Acho que vamos ter de equiparar o Brasil ao Leste Europeu. Estamos trabalhando com taxas negativas, e isso é muito ruim.
A senhora quer dizer que o Brasil está assim por não trabalhar de forma integrada?
Nos grandes centros, eles obedecem a essência do tratamento. Têm tudo o que é necessário para diagnóstico e transplante de medula. De qualquer forma, o Brasil partiu de menos de 5% de sobrevida há 30 anos para 47%. Mas um centro especializado, como o Boldrini, saiu dos mesmos 5% para 70%. Isso mostra que apenas alguns centros de referência deram um salto de qualidade. Temos de ter um sistema de avaliação de terapias para que a criança com câncer seja bem tratada e isso só ocorre em centros de referência. Não se pode tratar a criança em clínicas isoladas de quimioterapia ou em hospitais gerais. Hoje, no Brasil, existem talvez 150 instituições, mas apenas 30 teriam condições de fazer quimioterapia. Elas têm de passar por um crivo mais rigoroso para funcionar direito.
Qual é a proposta do Brasil para o grupo Mulheres Unidas pela Inovação na Saúde, que reúne 63 cientistas de várias partes do mundo?
O grupo, com sede em Paris, é constituído por mulheres que dirigem organizações relacionadas a pesquisas na área de inovação tecnológica para a saúde. A indicação para a participação nesse grupo terá reflexo em parcerias futuras voltadas para pesquisas, não somente na área do câncer pediátrico, mas da anemia falciforme e de outras doenças raras. Para o Brasil, e especificamente para Campinas, a indicação traduz a inserção de profissionais da saúde num grupo seleto de mulheres de alta posição em instituições renomadas de pesquisa, como, por exemplo, o Instituto Pasteur de Paris, o Inserm (o Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica francês) e o Instituto Gustave Roussy, em Paris. O grupo tem várias diretoras de empresas e laboratórios que trabalham com novas tecnologias. A presidente desse grupo, Rafa;le Tordjman, tem interesse na Unicamp, ela conheceu a Inova, a agência de Inovação Tecnológica vinculada à universidade, e fez a ponte com o Boldrini. Da segunda vez em que ela nos visitou, ficou muito impressionada com a estrutura da universidade, com as conquistas que tínhamos conseguido nos últimos 30 anos. A primeira proposta que estou levando é a integração da expertise dos cientistas e fazer uma análise crítica do que estamos desenvolvendo aqui no Brasil.
Algum trabalho especial?
Temos investigado células malignas em animais e plantas para a busca de novas drogas. Com o conhecimento que temos já há uns seis ou oito anos, podemos mostrar que esse modelo experimental de usar a célula maligna do paciente no animal e analisar, in vitro, como é a sensibilidade, a resistência a determinadas drogas, deve permitir ajustes, a médio ou a longo prazos, da quimioterapia, de acordo com a resposta in vitro. Há um teste chamado ;Time to leuchemia;, que está sendo usado para fins de investigação na Europa: ele reproduz a leucemia no animal com células malignas do paciente e diz que, quanto mais rápido o animal desenvolve a doença, mais agressivo é o curso da leucemia no paciente. O teste também permite experimentar novas drogas para ver a interferência delas no desenvolvimento da leucemia. Vou dizer (na segunda reunião do grupo, marcada para hoje) que a gente tem isso, tem o biobanco de células malignas, tem os modelos animais ; e acho que isso talvez possa interessar a eles.
Quando a senhora fala em ajustes na quimioterapia isso significa menos efeitos adversos?
Sim, me refiro à terapia-alvo. Drogas que não têm ação in vitro vão tê-la em animais, vamos testar efeitos adversos de algumas drogas, porque, com isso, podemos saber muito mais sobre a sensibilidade dessas drogas, a reversão da resistência. Estamos testando o sirolimus (um imunossupressor usado em transplantados de rim) para medir o grau de resistência do paciente a algumas drogas. Ao tentarmos a reversão dessa resistência, isso passa a ser importante para algumas drogas, como o corticoide, que na leucemia é uma peça-chave. Se o paciente é resistente, complica, não é? O fato é que estamos trabalhando em sintonia com as orientações do Grupo Cooperativo Brasileiro de Leucemia, vinculado à Sociedade Brasileira de Oncologia Pediátrica (Sobope), que prevê uma redução ou um aumento da quimioterapia, de acordo com a resposta biológica do paciente. Esse protocolo diz que testes devem ser feitos no oitavo, no 14; e no 28; dias. Essas três análises são importantes para se definir a diminuição ou o aumento da quimioterapia.
Qual foi o principal avanço do Centro Boldrini nos últimos 30 anos?
Nossa maior conquista, desde 1978, quando o centro foi criado, é o fato de termos conseguido aumentar as chances de cura de uma criança com leucemia de menos de 5% para 70%. Mas eu gostaria que fossem de 100%. Esses 30% são de crianças que não respondem ao tratamento nas primeiras semanas e servem para a gente estudar e tentar responder essas questões. O grande arsenal dessas conquistas, entre outras, foi a citometria de fluxo (técnica de contagem e análise de partículas microscópicas, tais como as células e os cromossomos, muito usada em câncer de sangue) e outros recursos da biologia molecular. Do ponto de vista da genética, existem mutações presentes em animais com leucemia que já indicam um bom ou um mau prognóstico. Então, estudos sistemáticos da citogenética (parte da genética que analisa a estrutura e a função da célula) são uma vitória nessas três décadas. Temos também o projeto Criança e Vida, criado com apoio do Ministério da Saúde, do Instituto Nacional do Câncer (o Inca), da Fundação Banco do Brasil e de outros parceiros. O programa foi fundamental para a vida de crianças e adolescentes com leucemia no Brasil. Logo na época de sua criação, em 1999, começamos a implantação de oito Centros de de Referência em Diagnóstico Laboratorial de Câncer Pediátrico estratégica e geograficamente localizados, todos funcionando com tecnologia avançada nas cinco regiões do Brasil (esse projeto teve apoio de uma fundação norte-americana, de US$ 8,5 milhões, em 1999). O projeto, que é símbolo desses avanços, tinha citometria de fluxo, um exame que vê a origem da família das células malignas e diz se é das células B derivadas ou T derivadas (linfócitos B e T definem formas diferentes de leucemias), por exemplo. Porque as leucemias, de acordo com essas derivações, vão ter prognósticos e tratamentos distintos. Então, o projeto focalizou suas ações na uniformidade de diagnóstico, com recursos da citogenética, nas cinco regiões do país.
Com que outro instrumento importante o centro conta e cuja tecnologia estendeu a outras instituições?
Recursos da biologia molecular, que manejamos sempre com foco no Projeto Genoma, permitem detectar uma quantidade mínima de células malignas no paciente que não são visualizadas no microscópio nem na citometria de fluxo. Isso é um dos avanços mais importantes, a biologia molecular, que é um aprimoramento da citogenética. Então, esse projeto tem outro saldo positivo ao delegar que cada centro de referência devia fazer capacitação profissional nas áreas geográficas que ainda não tinham determinadas tecnologias ou desconheciam alguns métodos de diagnósticos. Um dos ganhos do processo foi a possibilidade de receber amostras de células de cada região, sem ônus para o paciente. O importante é que criamos uma cultura da integração ao longo desses anos. Um exemplo disso são os grupos cooperativos. São instituições que usam os mesmos critérios de diagnóstico e de terapêutica, de controle de gerência de dados, e pessoas que monitoram resultados terapêuticos.
Qual é a importância desse monitoramento e qual o reflexo na melhora do tratamento?
Só para se ter uma ideia de como tudo isso é importante para melhorar as taxas de cura e a sobrevida dos pacientes, o professor Waldir Veiga Pereira (onco-hematologista que atua em várias instituições do Rio Grande do Sul) mostra em uma pesquisa recente que instituições que fazem tratamento especializado, com controle de dados e trabalham de maneira cooperativa com outros grupos melhoram o tratamento dos pacientes. A partir dessa gerência de dados, com a conferência periódica poderão dizer com mais certeza se aquele diagnóstico é isso mesmo, se está tendo falhas. Por isso, esse monitoramento é importante. A pesquisa mostra que nos locais (urbanos e rurais do Rio Grande do Sul) onde se tratam pacientes inseridos em protocolos terapêuticos prospectivos os resultados positivos chegam a 70%; e, em locais isolados, sem protocolos, esse resultado cai para 30%.