Ciência e Saúde

Livro de jornalista inglês revela a incrível história das cirurgias

Paloma Oliveto
postado em 12/06/2011 08:00
Quatro homens fortes seguram a vítima, para que não consiga fugir. Então, a pessoa sentada à frente dela pega um instrumento em forma de foice, provavelmente sujo e enferrujado. Com um golpe, crava a ponta do objeto na carne do pobre coitado que está imobilizado, até conseguir extirpar um membro de seu corpo. O episódio dura cerca de dois minutos ; os mais terríveis da vida do recém-amputado. Poderia ser uma sessão de tortura ou a cena de um filme tosco de terror, mas era como ocorriam as cirurgias do passado, em uma época sem anestesia, as mínimas noções da higiene necessária ou instrumentos precisos.

;Geralmente, o cirurgião usava tampões no ouvido, para que os gritos do paciente não o atrapalhassem;, conta Elaine Alves, cirurgiã pediátrica, professora da Universidade de Brasília (UnB) e membro da Sociedade Brasileira de História da Medicina. Durante milênios ; o primeiro indício de uma operação data de 10 mil a.C. ;, a humanidade dependeu da habilidade de homens sem formação alguma, munidos apenas de curiosidade e boa vontade, além equipamentos brutais, para tentar ajudar os enfermos. O suplício da cirurgia, porém, geralmente era em vão. ;Se não morria de dor, o paciente morria depois, de infecção;, diz Paulo Tubino, professor emérito da UnB, membro emérito do Colégio Brasileiro de Cirurgiões e fellow do Colégio Americano de Cirurgiões.

Essa história regada a muito sangue, dor e coragem foi dissecada pelo jornalista científico inglês Richard Hollingham, que mergulhou em arquivos para recontar os episódios mais assustadores da cirurgia. Ao fim do livro, chega-se à conclusão de que, se hoje as operações são praticamente limpas, sem hemorragias e com cortes microscópicos, deve-se agradecer a bravura de mulheres e homens que emprestaram seus corpos frágeis e doentes para a prática que culminou no desenvolvimento das tecnologias atuais.

Em Sangue e entranhas: a assustadora história da cirurgia (Geração Editorial), Hollingham conta que, por muitos séculos, a referência dos cirurgiões era Galeno, o médico dos gladiadores de Pérgamo, durante o Império Romano. O sistema de humores teorizado por ele fez sucesso durante um milênio. Apesar de surpreendentemente ter alguma coerência, a obra de Galeno era limitada pelo desconhecimento da anatomia. Ele achava, por exemplo, que o sangue era fabricado pelo fígado. ;O fato de que ele estava errado sobre muitas coisas não era propriamente falha dele;, lembra Hollingham. Nos primeiros séculos depois de Cristo, dissecar o corpo humano era algo inaceitável. ;Não obstante, passaram-se mais de mil anos antes que os médicos e cirurgiões começassem a questionar seus ensinamentos.;

Descoberta
Foi graças ao roubo de um cadáver já um tanto apodrecido que a medicina passou a entender melhor o interior dos pacientes. O mérito é do belga Andreas Vesalius. Quando estudante, no século 16, apropriou-se indevidamente do corpo de um criminoso executado, ferveu cuidadosamente os ossos, retirou o resto da carne e desenhou ossos, músculos e arti-culações, descrevendo-os com maestria. As páginas de seu livro, De Humani Corporis Fabrica (A fábrica do corpo humano), são ricamente ilustradas com o desenho de cadáveres nas mais diversas posições. Quinhentos anos antes da exposição Corpos, que esteve em Brasília no ano passado, exibindo o corpo humano em movimento, Vesalius já havia feito isso. É possível ver a obra no site da Biblioteca Nacional de Saúde dos Estados Unidos (http://archive.nlm.nih.gov/proj/ttp/books.htm).

Graças ao empenho de Vesalius ; e à contribuição involuntária do criminoso executado ;, os cirurgiões descobriram que o fígado não produzia sangue (foi uma informação um pouco chocante, já que finalmente se soube que Galeno não estava tão certo assim), aprenderam como os sistemas do organismo estão interligados e puderam avançar em seus ofícios, 1,3 mil anos depois de estagnados na obra do cirurgião romano nascido em Pérgamo.

O conhecimento mais acurado da anatomia humana, entretanto, não se reverteu instantaneamente em benefícios para os pacientes. Se os médicos e cirurgiões passaram então a ter uma ideia melhor sobre para onde apontar a faca, faltava uma peça importantíssima nas suas maletas: a anestesia. Hollingham descreve algumas amputações em seu livro e é difícil imaginar como alguém poderia suportar, por exemplo, que um médico enfiasse uma faca em sua perna, dilacerasse a carne, serrasse o osso e depois costurasse o resto de pele ; tudo isso acordado, consciente e sem poder se movimentar. Para diminuir o calvário dos pacientes, os médicos tentavam ser rápidos. Cirurgiões como o inglês Robert Liston eram capazes de arrancar um membro em 30 segundos. Tempo que, para a vítima, poderia parecer a eternidade.

Alívio
Somente na segunda metade do século 19, com o éter e o clorofórmio inalados em lenços ou máscaras de até 2kg, é que o suplício diminuiu. Mesmo assim, muitos pacientes morreram intoxicados. Os que escapavam tinham de enfrentar a segunda parte dessa gincana vital: sobreviver às infecções hospitalares, cujas causas eram inteiramente desconhecidas pelos médicos.

A historiadora Juliane Serres, diretora do Museu da História da Medicina do Rio Grande do Sul, lembra que, no pós-operatório, ;sobreviver era uma exceção;. ;A sala cirúrgica era uma antecâmera da morte;, conta. Antes de Pasteur lançar luz sobre a microbiologia, os poucos médicos que davam valor à higiene o faziam por pura intuição. No Rio Grande do Sul, Juliane conta que um cirurgião desenvolveu uma mesa cirúrgica, operada por um pedal. Assim, não precisava colocar as mãos na maca.

Esses, porém, eram exceção. Quando o médico húngaro Ignaz Semmelweis sugeriu que as infecções ocorriam porque seus colegas costumavam atender os pacientes sem fazer qualquer assepsia, foi internado em um hospício. Melancolicamente, pegou uma infecção no local e morreu à míngua. Semmelweis trabalhava em uma enfermaria que tinha duas alas. Em uma delas, as mulheres davam à luz com o auxílio de parteiras. Na outra, eram os médicos que faziam o trabalho. ;Na maternidade onde elas eram atendidas por parteiras, o índice de mortes e infecções era muito menor. O médico húngaro descobriu que seus colegas acabavam de dissecar cadáveres e iam em seguida fazer os partos;, diz Juliane.

O conjunto formado por anatomia, anestesia e assepsia finalmente mudou os rumos da medicina. Aos poucos, cirurgiões começaram a se arriscar mais, realizando operações cada vez mais ousadas, com maior segurança. Procedimentos bárbaros continuaram ao longo dos séculos ; como a terrível lobotomia (retirada de uma parte do lobo frontal do cérebro) ;, mas os tempos de entranhas empapadas de sangue haviam ficado para trás.

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