Paloma Oliveto
postado em 23/06/2011 09:00
Temidos pela humanidade por seus efeitos devastadores, os vírus também podem ser aliados da saúde. Como viajam facilmente pelo interior do corpo, eles são manipulados por cientistas para enviar às células genes que podem consertar diversos defeitos. Esses mensageiros têm sido bastante usados na chamada terapia gênica, mas nem sempre conseguem atingir o alvo certo. O problema foi solucionado por uma equipe de pesquisadores americanos, trazendo esperança a pacientes que sofrem de degeneração da retina, grupo de doenças que, progressivamente, levam à cegueira e para as quais ainda não há cura. O resultado da pesquisa aparece na edição de hoje da revista especializada Science Translational Medicine.Por serem órgãos pequenos e possuírem a habilidade de tolerar substâncias externas sem desencadear o processo de rejeição, os olhos são considerados alvos importantes da terapia gênica. Diversos experimentos usando a metodologia conseguiram restaurar parcialmente a visão de pessoas que ficaram cegas por causa de lesões no epitélio pigmentar (veja arte). Mas, até agora, os vírus não conseguiam chegar às células fotoreceptoras que, quando defeituosas, também levam à perda da visão. Testando um subtipo o vírus adenoassociado (AAV, sigla em inglês), os pesquisadores foram bem-sucedidos no tratamento de primatas, alcançando um resultado duradouro e com poucos efeitos colaterais.
Principal autor do estudo, Luk Vandenberghe, pesquisador sênior do Programa de Terapia Gênica do Centro de Oftalmologia Molecular F.M Kirby, da Universidade da Pensilvânia, explica que a metodologia é bastante complexa. ;O desenho de um vírus para a terapia gênica, com fins médicos, é um longo e complicado processo;, afirma, em entrevista ao Correio. ;Primeiro, é preciso identificar um vírus com propriedades que poderiam transportar o gene de maneira eficiente na célula ou no tecido que você quer tratar. Segundo, você tem de modelar esse vírus em um nível genético que consiga eliminar qualquer coisa que o deixe perigoso. Depois desses passos, o que inicialmente era um vírus torna-se o que chamamos de vetor, ou uma ferramenta para transportar os genes às células;, diz.
De acordo com Vandenberghe, em todos esses estágios, os cientistas testam meticulosamente se as manipulações foram efetivas. ;Não raramente, precisamos voltar ao laboratório para desenvolver uma nova metodologia ou ferramenta. Foi o que fizemos na nossa pesquisa. Trabalhamos por uma década, voltando várias vezes ao laboratório para desenvolver um novo transportador, chamado AAV8;, diz.
Problema hereditário
O vetor foi baseado na primeira geração de vírus usados na terapia gênica, os AAV2, que são efetivos em algumas ocasiões, mas não conseguem combater algumas doenças, como as desencadeadas por lesões nos cones e nos bastonetes. ;Aqui, mostramos que, na retina, o AAV8 é mais eficiente e seguro para alcançar as mais importantes células da visão e da cegueira.;
Em nota distribuída pela Universidade da Pensilvânia, Jean Bennett, coautor do artigo, afirma: ;Para ampliar o tratamento de doenças oftalmológicas hereditárias, precisaremos de um kit de ferramentas que inclua mais vetores, e o que observamos a respeito do AAV8 nos dá esperança para a criação de terapias genéticas para doenças que atacam fotorreceptores da retina. Esse estudo pré-clínico fornece a orientação de que precisamos para formular a dose e o tipo de vetor para levar genes corretivos que tratem a cegueira causada pela perda de fotorreceptores;.
Luk Vandenberghe conta que algumas terapias gênicas usando o vírus adenoassociado já foram testadas em humanos, com sucesso. ;Uma das primeiras aplicações em que a terapia se mostrou segura e efetiva foi em uma forma rara de cegueira hereditária. Muitas outras formas comuns de cegueira, porém, requerem que o alvo sejam as células fotorreceptoras, diferentes daquelas tratadas nos primeiros testes. Para expandir a gama de terapias gênicas para os olhos e eventualmente tratar mais doenças e mais pacientes, desenvolvemos na última década uma variedade de novas ferramentas;, diz.
Agora, os cientistas compararam o novo vetor AAV8 ao AAV2, já utilizado anteriormente em testes clínicos com sucesso, mas também com limitações. O primeiro mostrou-se bem mais eficiente. ;Verificamos alguns poucos efeitos colaterais em alguns animais, mas apenas com a mais alta dosagem, e achamos que essa medida não será necessária para alcançar o efeito terapêutico. Tentamos entender a causa desses efeitos colaterais e tudo indica que ele se deve a um gene chamado GFP que o sistema imunológico dos macacos consegue reconhecer;, explica Vandenberghe. Em princípio, portanto, em seres humanos não haveria reações adversas.
;O fato de que o AAV já foi aplicado em pesquisas com seres humanos nos olhos e que o AAV8 mostrou-se promissor em outro teste clínico, no tratamento da hemofilia, faz com que fique mais fácil começarmos os testes em humanos para combater a cegueira;, acredita o cientista. Ele conta que será preciso examinar com mais detalhes a duração dos efeitos da terapia gênica para doenças oftalmológicas, mas estudos anteriores com base na metodologia provaram que os benefícios perduram por anos e mesmo décadas. Isso significa que possivelmente, os pacientes terão de receber apenas uma injeção por toda a vida. ;Nos olhos, com vetores similares, sabemos que a terapia gênica em cachorros durou ao menos uma década;, diz Vandenberghe.
No experimento com o AAV8, os cientistas fizeram testes em macacos porque as diferenças entre os órgãos desses animais e de seus primos próximos são muito pequenas, já que compartilham mais de 90% dos genes. ;O que é muito importante é que os macacos são os únicos animais com uma retina igual à dos humanos, com uma região especializada que permite uma visão refinada, com cores e grande acuidade, chamada mácula. Dependendo da espécie de macaco, o tamanho do olho e da retina são mais diferentes, mas, nas que testamos, a semelhança com o olho humano era de 70%;, conta o cientista.