postado em 24/06/2011 08:00
Quais devem ser os interesses de um estudante? Gostar de cantar? Ser fascinado por literatura? Achar divertido passar horas montando um computador? Certamente, pais e professores não se incomodam com atividades desse tipo, mas elas estão longe de ser valorizadas como o bom desempenho nas provas de fim de ano ou no vestibular. Um erro grave, alertam especialistas, com respaldo de uma das mais importantes revistas científicas do mundo.A edição desta semana da Science apresenta um editorial com críticas à desvalorização dos interesses e habilidades individuais dos alunos por parte das escolas. Para Deborah Stipek, autora do texto e pesquisadora da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, o sistema educacional atual, baseado na concorrência e no desempenho em testes, pode prejudicar, e muito, a formação de grandes pensadores. Segundo a especialista, essa forma de ensino promove um verdadeiro extermínio de grandes mentes.
Em uma teleconferência de imprensa, da qual o Correio participou, Deborah afirmou que a maneira como a educação é organizada na atualidade faz com que potenciais vencedores do prêmio Nobel sejam perdidos antes mesmo do fim da educação básica, já que o modelo de ensino ;massacra; qualquer outro interesse que não seja o cobrado nos exames de admissão das universidades. ;Acho que os pais e estudantes estressados não devem pensar que ir bem nos testes ou entrar em universidades de ponta garantam que a pessoa terá sucesso. É importante desenvolver habilidades e talentos. Isso sim tem um papel fundamental no futuro de alguém;, defende.
Para ela, a pressão excessiva por desempenho sobre crianças e adolescentes, em todos os níveis de ensino, extermina o prazer pela busca do conhecimento. ;Lecionei durante 22 anos, e quando dizia aos alunos que haveria um teste, as primeiras perguntas que surgiam era sobre o número de questões, quantas alternativas haveria e quanto tempo teriam para respondê-las. Nada sobre o conteúdo;, lembra a especialista. ;As crianças, de alguma forma, acostumaram-se a lidar com essa pressão. Elas entram na pré-escola extremamente entusiasmadas pelo conhecimento e, por volta do terceiro ano, já estudam para tirar boas notas, não porque é divertido;, completa.
Menos decoreba
Apesar de a avaliação da pesquisadora ser baseada em observações da sociedade norte-americana, no Brasil o problema não é diferente. Uma pesquisa feita pela Universidade São Marcos, de São Paulo, mostrou que 40% das crianças em idade escolar estão estressadas. Outro levantamento semelhante, feito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também identificou o problema. Pelo menos uma em cada três crianças pesquisadas apresentava sintomas de estresse, em boa parte em função do excesso de pressão e atividades escolares.
A coordenadora-geral de Ensino Médio do Ministério da Educação (MEC), Sandra Regina Garcia, reconhece o excesso de competitividade e pressão nos estudantes em detrimento de uma formação mais humanística, que leve em conta os interesses e as habilidades dos alunos. ;Percebo esse movimento muito mais intenso nas escolas privadas, que buscam figurar na lista das que mais aprovam nos vestibulares;, avalia especialista. ;A educação pública brasileira, historicamente, tem um papel muito mais focado na cidadania e na formação global;, acredita.
O problema, no caso brasileiro, é que há poucas vagas nas melhores universidades, lembra José Augusto de Mattos, presidente da Federação Nacional das Escolas Particulares. ;Quem elabora as seleções é o Ministério da Educação e as universidades. Se a formação é muito direcionada e competitiva, é porque o sistema funciona assim;, argumenta. ;Se um aluno quiser ser aprovado no vestibular, ele terá de se dedicar e focar nos estudos;, garante.
Embora discordem sobre a responsabilidade pela excessiva competitividade no ensino, Sandra Garcia e José Mattos concordam quando o assunto é a solução para a mudança. Ambos acreditam que ela está no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). ;O exame utiliza um modelo de avaliação mais focado nas capacidades de análise e julgamento. À medida que for sendo ampliado, ele tende a possibilitar a flexibilização do ensino, em todos os seus níveis;, afirma a coordenadora da MEC. ;Por abolir o ;decoreba;, creio que esse modelo de avaliação servirá de base para outros testes e para a forma como as escolas se organizarão;, completa o diretor da Fenep.
Pais divididos
A questão também é polêmica entre os pais. Para Lúcia Mello, 39 anos, mãe de três filhos que estudaram tanto na rede pública quanto em escolas particulares, embora o ideal fosse uma educação mais humanística, as exigências do mundo contemporâneo são outras. ;A realidade da competição é inegável, por isso acho importante essa questão ser trabalhada dentro da escola;, opina. Para ela, mesmo a competição transmite lições importantes. ;Ter que se dedicar, estudar e dar o melhor de si são questões que as crianças precisam aprender. Ninguém vai bem, em nenhuma área, sem cultivar esses hábitos, e o ensino que foca nas avaliações transmite isso;, opina.
Ideia que, no entanto, não é compartilhada por Herbert Fernandes Viana, 43 anos. Pai de Camila, 17, e João Pedro, 9, ele acredita que a educação deve ser, acima de tudo, focada em valores. ;Uso o meu caso como exemplo. Quando eu estava na escola, voltei meus estudos para história, ciência e geografia, áreas de que gostava. Posso não ter sido o melhor aluno da turma, mas acabei descobrindo do que gostava e ganhando prazer em estudar isso. Na faculdade, não tive dificuldade em tirar boas notas exatamente porque o estudo era interessante e divertido;, conta o arquiteto. ;Hoje, com meus filhos, tento transmitir a mesma mensagem. Ter responsabilidade, mas estudar muito mais por prazer do que pelas notas.;
Para a coordenadora do Centro de Pesquisas sobre a Infância e a Adolescência (Cenpe) da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), Maria Beatriz de Oliveira, é preciso ressignificar a educação. ;É preciso redescobrir o significado de ir à escola, de estudar. Mercado de trabalho, preconceitos e status social são questões que devem deixar de nortear as políticas educacionais;, afirma a especialista. ;A sociedade valoriza muito mais o trabalho cooperativo, o trabalhar em grupo, mas a escola forma alunos muito mais focados na competição e no trabalho individual;, avalia.
Para ela, a dicotomia entre o que a escola estimula e o que é exigido pela sociedade acaba eliminando a possibilidade de as crianças traçarem seus próprios caminhos. ;Quem disse que é preciso ser o melhor aluno, frenquentar a universidade mais renomada ou fazer mil atividades extraclasse para ser uma pessoa de sucesso?;, questiona, fazendo coro com sua colega norte-americana. ;A maioria dos grandes pensadores que deixaram um legado para a humanidade seguiram caminhos muito diferentes do convencionalmente estabelecido. Tiveram seu tempo e fizeram o que fizeram unicamente porque gostavam daquilo e não por uma imposição social;, conclui Maria Beatriz.