Jornal Correio Braziliense

Ciência e Saúde

Sucesso atual na literatura e cinema, os bruxos foram temidos no passado

Os fatos que chegaram aos ouvidos de Giovanni Battista Cybo, papa Inocêncio VIII, eram mesmo assustadores. Em todas as regiões da Alemanha, pessoas do bem se viam assombradas por homens e mulheres ; essas, em maior proporção ; que voavam pelos ares, arruinavam rebanhos, secavam plantações, disseminavam epidemias e matavam só com o olhar. E não era conversa de camponeses ignorantes. As cartas enviadas ao papa levavam as criteriosas assinaturas de Heinrich Kramer e James Sprenger, inquisidores catedráticos que dois anos depois lançariam um dos maiores best-sellers da Idade Média: o Malleus maleficarum, ou Martelo das feiticeiras.

Em tempos de despedida de Harry Potter, o bruxinho que ensinou muitas crianças a ler e agora termina a saga como feiticeiro feito, é difícil imaginar que, no passado, a bruxaria era vista como uma realidade. Ao menos, aos olhos de religiosos implacáveis, governantes intolerantes e massas histéricas que não encontravam outras explicações para pestes e catástrofes naturais se não nos artifícios do demônio. A partir do século 15, uma epidemia de caça às bruxas tomou conta da Europa, levando milhares ao cadafalso e à fogueira.

De acordo com historiadores e antropólogos, a magia nasceu com o homem. Registros fósseis milenares indicam que na pré-história as forças desconhecidas eram convocadas para ajudar no sucesso das plantações e na cura de doenças. Na Antiguidade, gregos, romanos, hebreus, mesopotâmios, egípcios e povos tidos como bárbaros, como os celtas, tinham seus rituais consagrados a diversos deuses. Mas só no período medieval surgiu a figura da bruxa como se conhece hoje: uma mulher geralmente velha e feia, que faz poções no caldeirão, voa pelos ares e participa de sabás, festas demoníacas regadas a maldade e perversões sexuais.

O cristianismo demonizou as religiões politeístas e, não à toa, a representação clássica de satã é a figura de Cernunno, o deus de chifres dos celtas, responsável pela fertilidade e a fartura. Da mesma maneira, alguns estudiosos sugerem que do folclore pagão surgiram os elementos da bruxa medieval, que perdura até hoje. Para o professor de história moderna da Universidade Paris X-Nanterre Jean Michel Sallmann, o voo das feiticeiras é inspirado em Diana, a divindade romana associada à maternidade, que percorria o mundo montada no dorso de animais. Autor do livro Noivas de satã, o francês diz que a lenda de mulheres voando já existia na Antinguidade, na literatura romana e na mitologia germânica.

Ainda no século 10, o arcebispo de Tr;ves escreveu um manual eclesiástico no qual narrava esse execrável hábito de mulheres associadas ao demônio. ;Há mulheres más que (;) confessam abertamente que, à noite, montam em certos animais, com uma quantidade enorme de mulheres; e, no silêncio das horas mortas da noite, atravessam muitos países; obedecendo às ordens de Diana como se ela fosse sua senhora;, alertou R;ginon de Prüm, no Canon episcopi.

Desconhecimento
Parece improvável que homens estudados acreditassem em cenas como essas, que parecem sair diretamente de um filme de terror tipo B. Mas é preciso lembrar que os tempos eram outros. As péssimas condições de higiene nos amontoados urbanos que surgiam na Europa eram um convite à disseminação de doenças letais e desconhecidas. A medicina apenas engatinhava, os micro-organismos seriam descobertos somente no século 19, e ninguém conseguia explicar por que, aparentemente do nada, populações inteiras eram devoradas por pragas como a peste bubônica.

Tampouco se sabia o motivo pelo qual tantas crianças morriam ; na Idade Média, um terço dos bebês sequer completavam 1 ano. Camponeses perdiam plantações durante secas ou enchentes imprevistas e era mais fácil acreditar que o insucesso devia-se a alguma feitiçaria do que a questões meteorológicas.

;A cultura, na Idade Média, foi construída sobre fundações profundamente religiosas. Aqueles eram tempos onde a autoridade religiosa ditava as estruturas sociais e políticas, a ordem hierárquica familiar, o estado e o cosmos;, recorda, em entrevista ao Correio, a pesquisadora Inês Gonçalves, da Universidade da Madeira, em Portugal. O mundo estava dividido entre duas forças: o bem e o mal. Pessoas consideradas a escória faziam parte desse segundo grupo. ;A maior parte daqueles tachados como bruxos durante a Inquisição eram camponeses, principalmente mulheres. Muitas eram velhas e se dedicavam à cura das pessoas com medicina herbal ou mesmo por encantamentos e feitiços. Elas também faziam partos. Os camponeses ainda seguiam as antigas religiões pagãs, que adoravam deuses ligados à natureza;, explica à reportagem Mary Ann Campbell, pesquisadora e historiadora da Universidade de Washington.

Torturas
Esses rituais eram hedonistas, caracterizados por banquetes, danças e celebrações festivas. ;Muitos envolviam atos sexuais, alguns incluíam sacrifício humano;, diz Campbell. As festas pagãs podem ter dado origem à mitologia do sabá, o encontro noturno das bruxas, para o qual muitas mulheres acreditavam ter sido carregadas involuntariamente, enquanto outras, sob torturas, confessavam ir por conta própria.

No livro As bruxas e seu mundo, um dos maiores especialistas no assunto, o espanhol Julio Caro Baroja, transcreve o relato de um processo do século 15, em Toulouse, na França. Ana Maria de Georgel e Catarina, essa última identificada apenas como ;mulher de Delort;, foram acusadas de participar de sabás que ocorriam ;sempre na noite de sexta-feira para sábado;. A narrativa é digna de um conto de terror. Em seu depoimento, Ana Maria declarou que cozinhava ;ervas envenenadas e substâncias provindas de animais ou de corpos humanos que, numa horrível profanação, arrancava à santa paz dos cemitérios;. Nas festas, os hereges adoravam o diabo, que aparecia em forma de bode gigante, e cometiam ;toda a espécie de excessos;.

O uso da tortura fica claro quando os inquisidores afirmam que Catarina jurou inocência, mas depois ;confessou a verdade pressionada pelos meios que estão ao nosso alcance;. Além de participar de sabás, ela era acusada de fazer cair granizo sobre os ;campos de quem não gostava;, apodrecer trigos e vinhas, além de matar animais. Na Itália, os benandanti, camponeses que se reuniam à noite para beber e diziam ser capazes de combater bruxas e outros seres demoníacos, também foram perseguidos, associados ao paganismo e à demonologia.

Na segunda metade do século 17, a epidemia das bruxas começou a arrefecer. Com os avanços da medicina e do Iluminismo, nos 100 anos seguintes, a feitiçaria passou a ser encarada pela ciência e pelo próprio clero como superstição ou ilusões mentais. ;Mas os bruxos, os alambiques e seus vapores sulfurosos não demoraram a ressuscitar, graças à imaginação romântica, assombrada pelas forças ocultas e pelos espíritos invisíveis. Foi provavelmente no século 19 que o estereótipo da bruxa se impôs em toda a Europa, mesmo nas regiões que não a tinham conhecido no passado;, explica o historiador francês Jean Michel Sallmann. A redescoberta da bruxaria lotou páginas de livros e folhetins, e nos séculos seguintes, as telas de cinema. Harry Potter que o diga.

Tribunal secular
Ao contrário do que se imagina, a Igreja não era a única responsável por processar, julgar e punir os ;hereges;. Tribunais laicos faziam o mesmo por toda a Europa. O juiz recebia denúncias da própria comunidade, autorizava ou não a defesa do acusado e podia, com anuência da legislação, usar de tortura para pressionar a confissão.