Ciência e Saúde

Sucesso atual na literatura e cinema, os bruxos foram temidos no passado

Paloma Oliveto
postado em 24/07/2011 08:00
Os fatos que chegaram aos ouvidos de Giovanni Battista Cybo, papa Inocêncio VIII, eram mesmo assustadores. Em todas as regiões da Alemanha, pessoas do bem se viam assombradas por homens e mulheres ; essas, em maior proporção ; que voavam pelos ares, arruinavam rebanhos, secavam plantações, disseminavam epidemias e matavam só com o olhar. E não era conversa de camponeses ignorantes. As cartas enviadas ao papa levavam as criteriosas assinaturas de Heinrich Kramer e James Sprenger, inquisidores catedráticos que dois anos depois lançariam um dos maiores best-sellers da Idade Média: o Malleus maleficarum, ou Martelo das feiticeiras.

Em tempos de despedida de Harry Potter, o bruxinho que ensinou muitas crianças a ler e agora termina a saga como feiticeiro feito, é difícil imaginar que, no passado, a bruxaria era vista como uma realidade. Ao menos, aos olhos de religiosos implacáveis, governantes intolerantes e massas histéricas que não encontravam outras explicações para pestes e catástrofes naturais se não nos artifícios do demônio. A partir do século 15, uma epidemia de caça às bruxas tomou conta da Europa, levando milhares ao cadafalso e à fogueira.

De acordo com historiadores e antropólogos, a magia nasceu com o homem. Registros fósseis milenares indicam que na pré-história as forças desconhecidas eram convocadas para ajudar no sucesso das plantações e na cura de doenças. Na Antiguidade, gregos, romanos, hebreus, mesopotâmios, egípcios e povos tidos como bárbaros, como os celtas, tinham seus rituais consagrados a diversos deuses. Mas só no período medieval surgiu a figura da bruxa como se conhece hoje: uma mulher geralmente velha e feia, que faz poções no caldeirão, voa pelos ares e participa de sabás, festas demoníacas regadas a maldade e perversões sexuais.

O cristianismo demonizou as religiões politeístas e, não à toa, a representação clássica de satã é a figura de Cernunno, o deus de chifres dos celtas, responsável pela fertilidade e a fartura. Da mesma maneira, alguns estudiosos sugerem que do folclore pagão surgiram os elementos da bruxa medieval, que perdura até hoje. Para o professor de história moderna da Universidade Paris X-Nanterre Jean Michel Sallmann, o voo das feiticeiras é inspirado em Diana, a divindade romana associada à maternidade, que percorria o mundo montada no dorso de animais. Autor do livro Noivas de satã, o francês diz que a lenda de mulheres voando já existia na Antinguidade, na literatura romana e na mitologia germânica.

Ainda no século 10, o arcebispo de Tr;ves escreveu um manual eclesiástico no qual narrava esse execrável hábito de mulheres associadas ao demônio. ;Há mulheres más que (;) confessam abertamente que, à noite, montam em certos animais, com uma quantidade enorme de mulheres; e, no silêncio das horas mortas da noite, atravessam muitos países; obedecendo às ordens de Diana como se ela fosse sua senhora;, alertou R;ginon de Prüm, no Canon episcopi.

Desconhecimento
Parece improvável que homens estudados acreditassem em cenas como essas, que parecem sair diretamente de um filme de terror tipo B. Mas é preciso lembrar que os tempos eram outros. As péssimas condições de higiene nos amontoados urbanos que surgiam na Europa eram um convite à disseminação de doenças letais e desconhecidas. A medicina apenas engatinhava, os micro-organismos seriam descobertos somente no século 19, e ninguém conseguia explicar por que, aparentemente do nada, populações inteiras eram devoradas por pragas como a peste bubônica.

Tampouco se sabia o motivo pelo qual tantas crianças morriam ; na Idade Média, um terço dos bebês sequer completavam 1 ano. Camponeses perdiam plantações durante secas ou enchentes imprevistas e era mais fácil acreditar que o insucesso devia-se a alguma feitiçaria do que a questões meteorológicas.

;A cultura, na Idade Média, foi construída sobre fundações profundamente religiosas. Aqueles eram tempos onde a autoridade religiosa ditava as estruturas sociais e políticas, a ordem hierárquica familiar, o estado e o cosmos;, recorda, em entrevista ao Correio, a pesquisadora Inês Gonçalves, da Universidade da Madeira, em Portugal. O mundo estava dividido entre duas forças: o bem e o mal. Pessoas consideradas a escória faziam parte desse segundo grupo. ;A maior parte daqueles tachados como bruxos durante a Inquisição eram camponeses, principalmente mulheres. Muitas eram velhas e se dedicavam à cura das pessoas com medicina herbal ou mesmo por encantamentos e feitiços. Elas também faziam partos. Os camponeses ainda seguiam as antigas religiões pagãs, que adoravam deuses ligados à natureza;, explica à reportagem Mary Ann Campbell, pesquisadora e historiadora da Universidade de Washington.

Torturas
Esses rituais eram hedonistas, caracterizados por banquetes, danças e celebrações festivas. ;Muitos envolviam atos sexuais, alguns incluíam sacrifício humano;, diz Campbell. As festas pagãs podem ter dado origem à mitologia do sabá, o encontro noturno das bruxas, para o qual muitas mulheres acreditavam ter sido carregadas involuntariamente, enquanto outras, sob torturas, confessavam ir por conta própria.

No livro As bruxas e seu mundo, um dos maiores especialistas no assunto, o espanhol Julio Caro Baroja, transcreve o relato de um processo do século 15, em Toulouse, na França. Ana Maria de Georgel e Catarina, essa última identificada apenas como ;mulher de Delort;, foram acusadas de participar de sabás que ocorriam ;sempre na noite de sexta-feira para sábado;. A narrativa é digna de um conto de terror. Em seu depoimento, Ana Maria declarou que cozinhava ;ervas envenenadas e substâncias provindas de animais ou de corpos humanos que, numa horrível profanação, arrancava à santa paz dos cemitérios;. Nas festas, os hereges adoravam o diabo, que aparecia em forma de bode gigante, e cometiam ;toda a espécie de excessos;.

O uso da tortura fica claro quando os inquisidores afirmam que Catarina jurou inocência, mas depois ;confessou a verdade pressionada pelos meios que estão ao nosso alcance;. Além de participar de sabás, ela era acusada de fazer cair granizo sobre os ;campos de quem não gostava;, apodrecer trigos e vinhas, além de matar animais. Na Itália, os benandanti, camponeses que se reuniam à noite para beber e diziam ser capazes de combater bruxas e outros seres demoníacos, também foram perseguidos, associados ao paganismo e à demonologia.

Na segunda metade do século 17, a epidemia das bruxas começou a arrefecer. Com os avanços da medicina e do Iluminismo, nos 100 anos seguintes, a feitiçaria passou a ser encarada pela ciência e pelo próprio clero como superstição ou ilusões mentais. ;Mas os bruxos, os alambiques e seus vapores sulfurosos não demoraram a ressuscitar, graças à imaginação romântica, assombrada pelas forças ocultas e pelos espíritos invisíveis. Foi provavelmente no século 19 que o estereótipo da bruxa se impôs em toda a Europa, mesmo nas regiões que não a tinham conhecido no passado;, explica o historiador francês Jean Michel Sallmann. A redescoberta da bruxaria lotou páginas de livros e folhetins, e nos séculos seguintes, as telas de cinema. Harry Potter que o diga.

Tribunal secular
Ao contrário do que se imagina, a Igreja não era a única responsável por processar, julgar e punir os ;hereges;. Tribunais laicos faziam o mesmo por toda a Europa. O juiz recebia denúncias da própria comunidade, autorizava ou não a defesa do acusado e podia, com anuência da legislação, usar de tortura para pressionar a confissão.

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