Shirley Pacelli
postado em 18/08/2011 08:59
Belo Horizonte ; Na cultura chinesa, a palavra trauma (chuangshang) é derivada da justaposição de criação (chuang) e dor (shang), podendo ser compreendida como oportunidade de aprender com o dano. Reafirmando a crença oriental, um primeiro estudo do gênero no Brasil comprovou os efeitos neurobiológicos da superação de traumas psicológicos por meio da psicoterapia. A iniciativa avaliou o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) em policiais paulistas atacados por uma facção criminosa há cinco anos. Três instituições de ensino estiveram envolvidas na pesquisa: a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e a Faculdade de Ciências Médicas Santa Casa de São Paulo. A análise foi conduzida pelo psicólogo clínico Julio Peres, doutor em neurociências e comportamento pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, como alvo do seu pós-doutorado. De maneira inédita na literatura científica, foi evidenciado que o córtex médio pré-frontal tem um papel crítico no desenvolvimento da resiliência (capacidade de atravessar adversidades e voltar a uma qualidade de vida satisfatória).A pesquisa começou em agosto de 2006 e seus resultados foram divulgados recentemente. Como voluntários, foram selecionados 36 policiais que sofreram a primeira onda de ataques, a mais severa, e passaram pelo trauma de perda de colegas. Agentes, portanto, com a mesma ;idade de memória; do episódio e que, além disso, não tinham comorbidades (coexistência de transtornos e doenças) nem faziam uso de medicamentos. Nesse ponto, encontra-se o maior diferencial da pesquisa: uma amostra homogênea, um controle refinável de variáveis. Até o momento, quase todos os estudos existentes compararam indivíduos que têm memória traumática diferente, o que pode interferir nos resultados.
Peres explica que o TEPT é o único transtorno do qual se pode conhecer a causa e, por isso, é possível agir na desconstrução do trauma. O mal provoca um alerta contínuo na pessoa, ;uma maior adrenalina, para que não seja mais pega de surpresa;, assegura o pesquisador. Esse estado de alarme pode provocar insônia, irritabilidade, limitações profissionais e pessoais, além de pensamentos intrusivos, aqueles que você não quer, mas invadem a mente. ;O TEPT tem risco três vezes maior para emersão de comorbidades, como transtorno depressivo e transtorno somatoforme (sintoma físico sem base médica constatável). Se não for cuidado, pode ampliar o sofrimento dos indivíduos e de seus familiares;, complementa Julio Peres.
Entre as várias conclusões do estudo, a primeira é que a resiliência não é uma aptidão natural exclusiva de algumas pessoas. A capacidade de superar adversidades pode ser aprendida ou mesmo construída. Como? Por meio do acompanhamento psicoterápico tão logo o trauma tenha ocorrido. ;É uma relação inversamente proporcional: melhor a narrativa do indivíduo sobre o trauma, melhor sua qualidade de vida. Ele vai ressignificar o fato buscando um aprendizado. Muitas vezes, ele passa a contar o evento de outro jeito, mais leve, talvez até cômico;, detalha Peres.
Ainda segundo as conclusões observadas, não só é possível superar o trauma por meio da psicoterapia, como há ainda a possibilidade de que a experiência dolorosa favoreça benefícios adicionais na vida do indivíduo, em comparação com a que ele tinha antes da ocorrência traumática. O crescimento pós-trauma envolve aprendizados como abertura para novas experiências, valorização da vida, melhor relação interpessoal, resgate da religiosidade e descoberta de força e coragem para superação de problemas. Outra descoberta foi que, entre os policiais resilientes, as características mais importantes para enfrentar o episódio foram a autoeficácia, a empatia e o otimismo, além da religiosidade.
Situações extremas
Perda de entes queridos, acidentes, violência, conflitos interpessoais graves, enfermidades e catástrofes naturais são episódios que podem ocorrer com qualquer pessoa. Estudos epidemiológicos revelam que a maioria da população sofreu ou sofrerá um ou mais eventos potencialmente traumáticos, que podem levar a um transtorno de estresse pós-traumático. Para evitar essas ocorrências, Julio Peres acredita que não há outro caminho a não ser o das ações governamentais para minimizar a violência no Brasil.
;Grande parte dos traumas é causada pelos próprios seres humanos;, explica o pesquisador. Ele sugere que a mídia seja utilizada na promoção de comportamentos saudáveis. Para ele, o atendimento especializado a populações de risco, como bombeiros, policiais e médicos que trabalham na emergência, é uma das iniciativas mais importantes. ;O mundo subjetivo que construímos a partir de eventos dolorosos pode caracterizar o trauma ou não. Vivemos numa sociedade que tende a biologizar (estudar algo à luz da biologia) tudo. Trabalhar o subjetivo faz diferença no objetivo;, complementa.
O PASSO A PASSO DO ESTUDO
1
Dois exames de ressonância magnética funcional foram realizados em todos os policiais, com espaço de 40 dias entre eles, com o objetivo de verificar as variações na atividade cerebral relacionadas à recuperação de memórias traumáticas antes e depois da psicoterapia. Os participantes foram divididos em três grupos: o primeiro, com policiais traumatizados submetidos à psicoterapia; o segundo, com agentes traumatizados não submetidos à psicoterapia; e, o último, com não traumatizados (os chamados resilientes).
2
Durante o intervalo de 40 dias, o grupo 1 passou por um programa psicoterápico direcionado à superação traumática. A terapia ajudou os policiais a construírem a resiliência, apresentando queda de 37% dos sintomas da TEPT e com resultados das expressões neurais semelhantes aos do grupo 3 (resilientes).
3
Assim como os policiais resilientes, a segunda neuroimagem funcional do grupo 1 revelou um aumento da atividade do córtex médio pré-frontal (mPFC), simultaneamente a uma queda significativa da amígdala durante o resgate de memórias traumáticas. De acordo com Júlio Peres, essa parte do córtex é responsável pela categorização de experiências, pelo aprendizado e pela releitura de traumas, enquanto a amígdala responde pelas emoções negativas.
4
Surge aí a atenuação dos sintomas TEPT. Já o grupo 2, sem tratamento, teve piora dos sintomas e apresentou, em ambos os exames, aumento na atividade da amígdala e diminuição na atividade do mPFC. O que significa uma não superação do trauma.