A polêmica questão das pesquisas com células-tronco ganhou mais combustível esta semana. Em um artigo publicado na revista Nature, cientistas anunciaram a descoberta de um novo método de manipulação genética, que pode criar células-tronco embrionárias. Por meio da fusão entre ovócitos (óvulos que ainda não amadureceram) e células comuns, eles afirmaram ser possível voltar ao mesmo estágio das células pluripotentes, capazes de se transformar nos mais variados tecidos. Isso seria uma grande vantagem para amenizar a controvérsia mais recente, porque não se dependeria mais do uso de embriões reais. Por outro lado, ressuscita outro tema de enorme sensibilidade: a clonagem para fins terapêuticos. O problema é que a técnica ; semelhante à utilizada para a criação da ovelha Dolly ; gera uma estrutura com uma quantidade de cromossomos acima do normal. E os pesquisadores ainda não sabem como ultrapassar esse obstáculo.
Não é a primeira vez que os cientistas tentam gerar células-tronco humanas a partir de ovócitos doados por mulheres. Na teoria, o ovo serviria como uma espécie de orientador, pois reprogramaria o genoma de uma célula adulta para que ela voltasse a ser pluripotente. ;Essa foi a grande contribuição da Dolly: ela mostrou que uma célula diferenciada poderia voltar ao estágio embrionário;, lembra a geneticista Mayana Zatz, diretora do Centro de Estudos do Genoma Humano. No caso da ovelha, a experiência gerou um clone, embora esse não seja o objetivo das pesquisas que usam material humano.
;Em modelos animais com doenças como o diabetes e o mal de Parkinson, tal reprogramação celular funcionou bem. Se técnica semelhante puder ser criada para células humanas, isso trará ótimas possibilidades terapêuticas para tratar patologias debilitantes;, aposta Dieter Egli, pesquisador do The New York Stem Cell Foundation Laboratory e um dos autores do estudo. A ideia de Egli e seus colegas era determinar se o ovócito humano teria a capacidade de transformar células adultas em células-tronco, tal qual ocorreu com o ovócito da ovelha. ;Isso era uma grande questão, porque muitos grupos que tentaram fazer isso antes falharam;, conta o cientista.
A equipe, então, resolveu mudar um pouco o método (veja infografia). Com material de animais, os pesquisadores inserem a célula adulta no ovócito e, pouco depois, retiram o genoma. Isso é feito porque a célula especializada já tem todos os cromossomos necessários a uma célula normal. Se eles mantivessem o DNA do ovócito, haveria material genético ;sobrando;. Como isso não deu certo com células humanas, a alternativa foi manter o genoma do ovócito. ;Conseguimos provar que, sim, um ovócito humano é capaz de transformar células especializadas em células-tronco;, comemorou Dieter Egli.
A fusão deu origem ao blastocisto, um conjunto de células que antecede a formação do embrião. No processo natural da gestação, o blastocisco surge em torno de 16 dias após a fecundação. A estrutura é composta por três camadas: a externa, que forma neurônios; a do meio, que origina células musculares; e a interna, que se transforma em órgãos, como os rins. ;O maior achado dessa pesquisa foi que eles conseguiram mostrar a necessidade de interação entre o núcleo do ovócito com o da célula adulta para o desenvolvimento do organismo;, comenta a pesquisadora brasileira Mayana Zatz.
O sucesso da experiência, porém, não garante a viabilidade do método. ;Ainda há muito trabalho a ser feito no ovócito humano para chegar a uma célula pluripotente que contenha apenas o genoma da célula especializada;, reconhece Dieter Egli. O pesquisador acredita que isso é possível, porque há um momento em que os núcleos das duas estruturas não se misturam. ;O objetivo é criar uma tecnologia para remover o genoma do óvulo nos estágios iniciais, porque, quando os núcleos se misturam, eles não podem mais ser separados;, diz Egli.
Entrave ético
E esse não é o único desafio que Egli e seus colegas precisam vencer. O maior problema é conseguir óvulos humanos para esse tipo de pesquisa. No estudo, os cientistas norte-americanos utilizaram 270 ovócitos de 16 mulheres. Ao entregar seu material biológico para um clínica de reprodução assistida, elas tinham a opção de destiná-lo para casais inférteis ou para a realização de estudos com célula-tronco. ;A discussão sobre as preocupações éticas levantadas por esse trabalho estavam calmas, e o grupo de pesquisa por trás do mais recente estudo tratou uma das questões éticas mais dúbias ; a obtenção de óvulos humanos de doadoras ; de forma transparente;, escreveu a Nature em seu editorial.
A ideia dos pesquisadores norte-americanos é que a técnica possa, no futuro, substituir a atual forma de desenvolvimento de células-tronco in vitro. Batizada de IPS (do inglês induced pluripotent stem cells, ou células pluripotentes induzidas), ela utiliza células adultas e vírus, que ativam genes presentes na formação do embrião. O método, contudo, já apresenta falhas. ;Foi reportado que células IPS podem causar mutações em genes responsáveis pelo câncer e isso poderia ser transplantado para o paciente;, explica Scott Noggle, outro cientista que participou da pesquisa.
De qualquer forma, pesquisadores e médicos reforçam a necessidade de manter os estudos com as células-tronco. ;Nós geramos células pluripotentes a partir do material biológico de cada paciente. Com isso, podemos testar diferentes estratégias para corrigir defeitos genéticos, caso a caso;, aponta Mayana Zatz. Por isso, ressalta a geneticista, é importante continuar utilizando embriões nesse tipo de investigação. ;Com os embriões congelados, você observa o caminho natural da evolução e, assim, pode comparar com as células pluripotentes geradas em laboratório;, defende.
Peças da vida
Óvulos e espermatozoides são as únicas células que contêm apenas 23 cromossomos cada. Isso porque, quando elas se unem, formam a primeira célula do embrião, com 46 cromossomos, número que define a espécie humana. No caso da pesquisa norte-americana, a célula tem 69 cromossomos: os 23 do ovócito e os 46 da célula adulta.