Ciência e Saúde

Especialista em tratar distúrbios cardíacos fala sobre futuro da área

postado em 10/12/2011 08:30
Quando cursava medicina no Christian Medical College, em Vellore, na Índia, Samuel Asirvatham sonhava ser neurocirurgião. Percebeu, no entanto, que não seria um grande profissional na área e começou a se interessar por cardiologia, mais especificamente pelo cateterismo, procedimento com o qual os médicos podem fazer diagnósticos e tratamentos do coração. Nessa época, quando se graduou, em 1985, ele leu um artigo sobre ablação por cateterismo ; técnica que usa a cauterização para tratar arritmias. ;Sabe quando as pessoas dizem que você apenas olha para alguém e sabe que vai se casar com ela? Foi a mesma coisa quando eu li aquele artigo. Eu disse: ;Vou fazer isso;;, explica.

Asirvatham mudou-se para os Estados Unidos, especializou-se em eletrofisiologia e se tornou reconhecido internacionalmente como um dos mais importantes médicos em tratamento de distúrbios do ritmo cardíaco. Esse sucesso, segundo ele, se deve a estar no lugar certo, no momento certo. Isso porque essa área da cardiologia se desenvolveu exatamente entre as décadas de 1980 e 1990, período em que fazia residência na Universidade de Wisconsin. Embora tenha pacientes de diversas faixas etárias, uma de suas maiores paixões é tratar de crianças e adolescentes, grupos entre os quais, garante, são visíveis as transformações na qualidade de vida quando o tratamento é bem-sucedido. ;A vida da criança muda. Você não vê a diferença em seis meses, mas, após um ano, dois anos, eles nem se lembram de como era a época em que sofriam com a doença. É muito gratificante.;

Em visita a Brasília para participar do 28; Congresso Brasileiro de Arritmias Cardíacas, o eletrofisiologista indiano, que é vice-presidente de inovação cardiovascular da Divisão de Doenças Cardiovasculares e consultor do Departamento de Cardiologia Pediátrica da Clínica Mayo (EUA), conversou com o Correio sobre distúrbios do ritmo cardíaco em crianças, a aplicação de tratamentos de arritmias do coração para distúrbios elétricos no cérebro e o futuro da eletrofisiologia.

Quais são os distúrbios de ritmo cardíaco que mais afetam as crianças e os adolescentes?
O problema mais comum é ter vias acessórias, conexões extras entre as câmaras superior e inferior do coração que fazem com que eles sintam palpitações. O segundo problema mais comum é a taquicardia ventricular, quando há um aceleramento das batidas da câmara na parte de baixo do coração. Às vezes, isso é um problema genético ou da cardiologia molecular. Isso quer dizer que os íons (partículas com cargas elétricas) que entram e saem do coração são anormais nessas crianças e adolescentes.

Qual foi o paciente mais jovem que o senhor já tratou?
Foi um bebê que ainda estava na barriga da mãe. Um feto com 26, 27 semanas de gestação pode ter o coração batendo muito rápido, mas, se fica rápido demais, o bebê pode morrer de insuficiência cardíaca. Se o problema acontece, nós tratamos a arritmia. Quando o bebê nasce, podemos fazer a ablação, mesmo com poucas semanas de vida, mas quando ainda está na barriga da mãe usamos remédios para tratar.

O que é mais complicado: tratar crianças, adolescentes ou adultos com distúrbios do ritmo cardíaco? Por quê?
Sem dúvida, é mais difícil tratar crianças. A maior parte do que temos, entre ferramentas e remédios, é elaborada para adultos. Ajustar isso para as crianças não é tão fácil. Além disso, crianças muito pequenas não conseguem identificar seus sintomas. Um paciente meu, um menino de 3 anos, tinha palpitações, mas dizia que sentia dor de cabeça, porque não conseguia diferenciar o que era uma dor de cabeça de uma palpitação. Cuidar das mais novas sempre é complicado, porque, ao tratá-la, você tem três pacientes: o pequeno e os pais. Temos que explicar o que estamos fazendo em qualquer procedimento. Adolescentes normalmente não são um problema. Eles respondem muito bem aos tratamentos e são muito empolgados em se curar e voltar à vida normal.

É mais arriscado fazer o procedimento de ablação para tratar arritmia em crianças e adolescentes, em comparação ao tratamento em adultos?
Para adolescentes, o risco é o mesmo que para adultos, mas fazer o procedimento em crianças muito pequenas é mais arriscado. Já fiz ablação em bebês de 1 ano, 6 meses, 3 semanas de vida e nesses casos é muito difícil, porque um pequeno movimento do cateter pode causar uma grande lesão. A maior dificuldade é que os cateteres são muito grossos, não temos cateteres pequenos. Só fazemos a ablação em crianças em casos nos quais não temos outra alternativa.

E em pacientes idosos?
Pacientes idosos também podem ser um problema, porque seus tecidos são muito frágeis. O paciente mais velho em quem já pus um marca-passo tinha 105 anos. A pessoa mais idosa em quem fiz uma ablação da fibrilação atrial, que é um procedimento complicado, tinha 92. Esses casos são quase como o de crianças, tem que ser muito cuidadoso.

Pais com problemas cardíacos têm mais chances de ter filhos com arritmias congênitas?
Depende da arritmia. Para a taquicardia supraventricular em ambos os ventrículos, o risco de ter um filho com a mesma anomalia é de 5%. As doenças mais comuns têm um risco de transmissão de 5%, no máximo. Em outros casos, contudo, as chances são muito mais altas, como a displasia do ventrículo direito. É um problema em que o ventrículo direito se transforma em gordura em vez de músculo. Isso pode ser passado de mãe ou de pai para filho em 15% a 20% dos casos. Há outras doenças muito raras, mas que, quando acontecem, podem afetar toda a família. Um exemplo é o defeito da proteína quinase cAMP, que, se os pais tiverem, há 20% de chances de o filho ter.

O senhor foi médico na Índia e nos Estados Unidos. Quais são as maiores diferenças entre trabalhar nesses dois países?
Há muitas diferenças. Eu faço muitos procedimentos na Índia ainda hoje. Vou quatro ou cinco vezes por ano lá. Quando saí do país, no fim dos anos 1980, não havia eletrofisiologistas por lá. Agora, há três ou quatro profissionais muito bons. A principal diferença que vejo na Índia, na Birmânia, na Tailândia, nas Filipinas e na Coreia do Sul é que os pacientes confiam muito nos médicos, então você pode fazer o que é necessário para tratá-los, a decisão cabe a você. Nos Estados Unidos, não é assim. O médico sabe o que deve ser feito, mas o paciente pode ter medo dos riscos, pode ter ouvido alguma informação de outra pessoa que diminui a confiança no profissional. Outra coisa distinta entre os países orientais e os EUA é a questão financeira. Se eu digo para o paciente que o ideal para o caso dele é implantar um desfibrilador, que custa cerca de US$ 30 mil, nos Estados Unidos a pessoa vai pagar pelo desfibrilador. Na Índia, isso seria muito complexo por causa do preço. Você tem que ter tentado todas as outras possibilidades antes de colocar o desfibrilador. Na Índia, também é muito difícil para os pacientes receber o melhor tratamento, pois às vezes eles vão ao médico errado, que não é o especialista para tratar seu problema. Enquanto isso, nos EUA, há todos os tipos de especialistas disponíveis.

O que o senhor acha do tratamento de arritmias cardíacas no Brasil? Qual sua opinião sobre os eletrofisiologistas brasileiros?
A primeira vez que entrei em contato com a eletrofisiologia no Brasil foi em 1994. Desde aquela época, o Brasil sempre teve profissionais de destaque na área, tanto na questão de implantação de marca-passos quanto nas ablações. Um dos cinco ou 10 melhores eletrofisiologistas do mundo é Maurício Arruda, de São Paulo, que trabalha em Cleveland. No Brasil, há uma maior incidência de uma doença específica, o mal de Chagas, que causa taquicardia ventricular e afeta pacientes jovens. Por isso, os médicos são forçados a procurar um tratamento para esse problema, enquanto nos EUA e na Europa os problemas cardíacos afetam mais as pessoas mais velhas, então não há tanta pressão em busca de novas terapias. Provavelmente é por isso que tantas coisas vêm sendo desenvolvidas no país em termos de marca-passos, cirurgias que tratam insuficiência cardíaca, cirurgias para arritmias cardíacas.

O senhor usa técnicas de tratamento de arritmias cardíacas para tratar distúrbios elétricos do sistema nervoso central. Que
técnicas são essas e para quais doenças elas podem ser usadas?
Eletrofisiologistas buscam distúrbios elétricos no corpo, com foco nos que acontecem no coração, mas imagine que vem alguém de Marte e pergunta: ;Onde está a eletricidade no corpo?;. A maior parte está no cérebro. Sabemos que há anomalias elétricas no coração, mas também há no cérebro. No coração, nós chamamos de taquicardia. No cérebro, chamamos de epilepsia. É uma anomalia elétrica que faz o cérebro funcionar muito rapidamente. Desenvolvemos uma série de ferramentas com as quais fazemos a ablação como no coração, mas vamos por meio de uma veia específica e levamos o cateter para o cérebro. Quando encontramos os sinais elétricos anormais, tentamos fazer a ablação. Podemos estimular a região, bloquear seu funcionamento, cauterizá-la. A primeira publicação sobre isso foi feita pelo médico Benhur David Henz, de Brasília.

Além da epilepsia, a técnica de ablação poderá ser usada paratratar outros problemas elétricos no cérebro? Quais?
Há outros usos da ablação além de para a epilepsia que buscamos em pesquisas com animais. Um deles é para tratar transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) e também obesidade. Um dos motivos para a pessoa ganhar muito peso é que, em uma parte do cérebro, quando comemos algo, os sinais elétricos emitidos pela região dizem quando você está satisfeito. Em algumas pessoas, porém, isso não funciona corretamente. Por outro lado, há outra região que nos diz para comer. Ambas são importantes e ficam próximas do hipotálamo. Estimular o centro de satisfação pode ser uma maneira de tratar essas pessoas e poderíamos fazer isso por uma pequena veia que passa por essa região do cérebro. No TOC, o que existe é um comportamento obsessivo. Como os remédios para tratar TOC são semelhantes aos usados para tratar epilepsia, esse problema de saúde também pode ser causado por um distúrbio elétrico. A maioria desses experimentos é feita na Clínica Mayo, mas também temos uma afiliada na República Tcheca.

Como o senhor estima que será o futuro dos tratamentos de distúrbios do ritmo cardíaco nos próximos 10 a 15 anos?
Minha filha, de 11 anos, diz que quer ser eletrofisiologista. Quando ela se tornar uma eletrofisiologista, ela vai rir do que fazemos agora. Vai dizer: ;Como assim, estão queimando algo dentro do coração?;. Não sabemos quais vão ser as mudanças na área daqui pra frente. Algumas pessoas acham que vai ser terapia com células-tronco, outras acham que serão novos medicamentos. Meu palpite é de que nos próximos 10 ou 15 anos o progresso será em tratar os nervos que alimentam o coração.

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