Ciência e Saúde

Pesquisadores propõem novas normas para pesquisas científicas com pessoas

Ideia é proteger os direitos dos voluntários

postado em 17/12/2011 08:00
O ano é 1946; o local, a Guatemala. Uma série de estudos sobre doenças sexualmente transmissíveis são realizados por pesquisadores norte-americanos. O resultado: milhares de pessoas expostas a males como sífilis e gonorreia. Décadas depois, mais precisamente em 2010, o caso ocorrido na América Central vem à tona. A repercussão da história leva o presidente Barack Obama a pedir, pela primeira vez na história dos Estados Unidos, desculpas pela forma como o país conduziu uma de suas pesquisas científicas (leia Para saber mais).

Para evitar que esse tipo de situação ocorra novamente em um mundo cada vez mais integrado cientificamente, a Comissão de Bioética dos EUA lançou nesta semana um relatório propondo 14 mudanças na maneira como voluntários de pesquisas médicas são tratados. A ideia é tratar as pesquisas científicas de maneira mais ética e sintonizada com os direitos humanos.

Entre os pontos defendidos pelo relatório, batizado de ;Ciência moral: Protegendo participantes de pesquisas com seres humanos;, estão a responsabilidade dos cientistas em arcar com os custos de tratamento de pacientes que eventualmente sofram algum problema em função dos testes e a definição de critérios de escolha dos locais onde os voluntários serão selecionados. O intuito é fazer com que os pesquisadores deixem de utilizar apenas a razão socioeconômica, que leva a maioria dos testes para áreas pobres como a África ; onde as leis são mais flexíveis e é mais fácil encontrar voluntários ;, e passem a utilizar questões mais científicas, como o impacto de um eventual resultado naquela região.

Para Amy Gutmann, pesquisadora que presidiu a comissão que apurou o caso da Guatemala e elaborou o informe desta semana, não há risco de o fatídico episódio se repetir. ;A comissão está confiante de que o que aconteceu na Guatemala na década de 1940 não poderia acontecer hoje;, afirmou em teleconferência da qual o Correio participou. ;No entanto, também é claro que melhorias podem ser feitas para proteger os seres humanos daqui para frente. Com as recomendações da comissão, a sociedade continuará a se beneficiar de avanços na qualidade de vida graças a pesquisas com seres humanos e assegurar o respeito à dignidade de voluntários;, pontuou.

Questões mais amplas, que repensam de maneira global as pesquisas com humanos, também fazem parte da publicação. O grupo de especialistas propõe, por exemplo, que novos estudos sejam desenvolvidos para verificar os riscos que esses testes representam e criar uma ;cultura de responsabilidade; que conscientize os próprios pesquisadores de quão seriamente deve ser considerado o uso de voluntários. Outra recomendação é de realizar um acompanhamento mais substancial dos testes realizados. ;Quando as agências federais não têm mecanismos internos para fornecer os dados necessários sobre as pesquisas, há uma base limitada para cobrar do governo;, afirmou Amy.

Embora concorde com o aperfeiçoamento das regras que regem a experimentação com seres humanos, o coordenador da Cátedra Unesco de Bioética Volnei Garrafa afirma que os Estados Unidos ainda têm uma posição muito agressiva sobre o tema. ;Em 2008, a Assembleia Médica Mundial flexibilizou uma série de normas que envolvem os testes com humanos. Essa era uma reivindicação antiga dos EUA, que, depois de muita pressão, conseguiram ver aprovadas;, conta o professor da Universidade de Brasília (UnB).

Na revisão da Declaração de Helsinque, ocorrida há três anos, Brasil, Portugal, África do Sul e Uruguai foram os únicos países que se opuseram à alteração do texto proposta pelos norte-americanos. Em vigor desde 1964 ; com atualizações periódicas ;, o documento deixou de recomendar que os pesquisadores acompanhem, após o término das pesquisas, a saúde dos pacientes. Outro ponto flexibilizado foi a limitação para o uso de placebos. ;Se antes eles só poderiam ser utilizados em casos muito específicos, agora estão liberados. Em vez de compararem o seu medicamento com o melhor medicamento existente, os cientistas podem compará-lo com uma substância sem efeito;, afirma Garrafa.

No Brasil
A autorização da experimentação humana no Brasil fica a cargo da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), vinculada ao Conselho Nacional de Saúde (CNS). Antes de serem colocados em prática, os testes precisam ser aprovados por comissões dos locais onde serão realizados e por comissões estaduais. Só depois, a pesquisa vai ser avaliada pela Conep, que é composta por pesquisadores e representantes do governo e da sociedade civil. ;Nós nos retiramos da Declaração de Helsinque e não voltamos exatamente por termos normas éticas mais rígidas e robustas que as de muitos países;, diz Gyselle Tannous, coordenadora da Conep.

O Ministério da Saúde também fiscaliza as pesquisas, por meio da Plataforma Brasil, uma base de dados semelhante à proposta agora pelos Estados Unidos. ;Recebemos muita pressão internacional, especialmente vinda das indústrias, para flexibilizarmos nossas normas. Mas temos uma população diferente da dos países ricos, não dá para adotar os mesmos sistemas de lá. Ainda temos uma população com índices de educação e esclarecimento diferentes da de primeiro mundo;, afirma Gyselle. ;É comum chegar às nossas mãos termos de consentimento (documento no qual o paciente concorda em participar da pesquisa) com 35 páginas. Como exigir que uma pessoa que muitas vezes já está fragilizada por conta da doença, atrás de uma esperança de tratamento, esteja ciente a que será submetida ao ler 35 páginas de termos técnicos?;, questiona.

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