Shirley Pacelli
postado em 19/12/2011 10:52
Belo Horizonte ; Durante dois anos e oito meses, o pesquisador Rafael de Nuzzi Dias, católico, despiu-se de preconceitos e visitou quatro diferentes segmentos de terreiros de umbanda em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, para desenvolver um estudo. A experiência resultou na dissertação de mestrado ;Correntes ancestrais: os pretos-velhos do Rosário;, que buscou compreender a doutrina sob a ótica social. Uma das mais importantes reflexões que podem ser apreendidas da pesquisa é que o umbandismo está intimamente ligado à história cultural do Brasil.
Negros, europeus e índios formaram o país. Bebendo das características religiosas dessas fontes, surgiu, em 1908, no estado do Rio de Janeiro, a umbanda em todo o seu sincretismo. A religião orgulha-se em afirmar que é genuinamente brasileira. Segundo a Federação Brasileira de Umbanda, são cerca de 5,3 mil terreiros afiliados no país atualmente.
Mestre em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), Dias faz parte do grupo que integra o Laboratório de Etnopsicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP em Ribeirão Preto (FFCLRP/USP), coordenado pelo professor José Miguel Bairrão. O objetivo do seu trabalho foi tentar entender como a cultura, os símbolos e os dispositivos que compõem os saberes são utilizados para elaborar questões que podiam ser chamadas de psicológicas. Com a aplicação da etnopsicologia, relativa às raças, procurou-se compreender como a cultura religiosa modela o lado psicológico do indivíduo.
A umbanda, que traz do candomblé o culto aos orixás, é uma religião de possessão que organiza por categorias os espíritos incorporados pelos médiuns. Seu fundamento é a caridade, ajudar ao próximo, premissa encontrada tanto no espiritismo quanto no catolicismo. ;Os pretos-velhos se apresentam como escravos, mas no sentido amplo, não só do personagem histórico colonial. Eles tentam mostrar que existe na vida uma dimensão de opressão. A redenção se obtém pelo sofrimento, assim como em Cristo. Experiência que propicia desenvolvimento, aproxima de Deus;, esclarece Rafael Dias.
O pesquisador conta que é possível também perceber a presença dos ensinamentos indígenas por meio da entidade cabocla e pelo valor que os umbandistas dão às ervas. ;No terreiro, é comum as pessoas que vão se consultar, gratuitamente, saírem com receitas de banhos ou chás. Boldo, guiné, arruda, alecrim... O índio trouxe a sabedoria desse conhecimento orgânico da natureza;, ressalta o psicólogo. Da concepção espírita vem a ideia de encarnação e do carma. Os seguidores da umbanda acreditam que todos já tiveram várias vidas na Terra e que voltam a ela para uma evolução espiritual. Já em referência ao catolicismo, todos os terreiros têm a imagem de Jesus Cristo em posição de destaque, mas dificilmente se vê a representação do Cristo na cruz. ;A ênfase é no Jesus da sabedoria;, justifica Dias.
Nas giras
Para escolher os terreiros que seriam estudados, o psicólogo fez um trabalho-piloto de campo e por questões subjetivas, como receptividade, determinou os lugares. No grupo havia algumas comunidades mais esotéricas e outras mais voltados para as raízes africanas. Segundo ele, os terreiros podem ser pequenos (15 a 20 médiuns e até 20 pessoas na assistência) ou bem maiores (150 médiuns).
Essa parte inicial do projeto foi essencial para determinar que os pretos-velhos seriam as divindades a serem analisadas. ;Eles me chamaram a atenção por serem sábios e terem posição de destaque entre as entidades. Percebi também o quanto são importantes para a organização do terreiro e que são referência de ancestralidade, embora os seguidores não confirmem essa ligação, porque, para eles, o espírito perde esse direito;, explica. Dias participou de várias giras (ritual de umbanda) públicas, pelo menos uma vez por semana, em horários alternados. ;Acabei desenvolvendo uma relação de confiança mútua. Muitos dados foram coletados em conversas informais;, explica o pesquisador, acrescentando que o terreiro Padre José Rosário foi eleito como caso-modelo para apresentação dos resultados.
A primeira experiência em uma sessão ;foi um choque;, como relata. ;Nunca tinha tido contato com religiões mediúnicas. Você tem a sensação clara de que está diante de outra pessoa;, explica. Apesar desse primeiro impacto, o psicólogo seguiu com seu objetivo e entrevistou não somente os médiuns, como também os espíritos incorporados. Tudo está registrado em áudio e fotos, com a autorização dos participantes. Ele conta que as pessoas recorrem aos terreiros com as mais variadas demandas: irmão desempregado, filho doente, problema amoroso etc. Algumas delas, ao frequentar o espaço, sentem coisas diferentes e descobrem que têm mediunidade.
;Os médiuns são pessoas que começam a ter algum tipo de contato com o sobrenatural. Eles têm sensibilidade: ouvem vozes, sentem, sonham com frequência com figuras de escravos ou índios. E isso é interpretado como um chamado para prestar caridade no terreiro de umbanda;, descreve. Nesse ponto também se pode perceber sinais da concepção kardecista, doutrina difundida pelo professor francês Hippolyte Léon Denizard Rivail (que usou o pseudônimo Allan Kardec para divulgar o espiritismo) nos anos 1860. ;Tanto o espírito quanto o médium estariam ali para evoluírem;, relata.
Para Rafael Dias, assim como a psicanálise transforma a pessoa pela palavra, a relação preto-velho/indivíduo (médium/espírito) faz com que o sujeito dê novos significados a sentimentos conflitantes e encontre a conciliação com seu próprio inconsciente. ;A mente é um mundo de ideias. Quando elas entram em choque, surgem doenças mentais. Na terapia, com a conversa, você pode mudar a vida de um paciente. Essa mediação também se provou possível por meio do universo simbólico da umbanda;, afirma o pesquisador.
Tolerância à diversidade
A relação da umbanda com outras crenças é de pura tolerância, diz o diretor cultural da Federação Brasileira de Umbanda, José Carlos Gentil da Silva. ;Os terreiros são abertos à chegada de visitantes.; E faz questão de esclarecer a equívoca associação da umbanda com práticas do mal. ;A palavra macumba refere-se a um instrumento musical africano e ganhou sentido pejorativo na cultura popular. Os rituais para o mal, que sujam as cidades, são mesclados de magia comum que se utilizam do guarda-chuva da palavra para se resguardar. Existe uma doutrinação na umbanda voltada para o bem;, afirma.
Antonio César Perri de Carvalho, secretário-geral do Conselho Federativo Nacional da Federação Espírita Brasileira, ressalta a importância do respeito à diversidade religiosa. ;Deve haver somatória de esforços quando existe um objetivo em comum: a caridade.; São quatro tipos de giras (rituais) da umbanda: desenvolvimento (preparação de novos médiuns), caridade, festiva e de estudo e doutrinação de valores evangélicos.