Ciência e Saúde

Estudo de universidades dos EUA aponta gene que provoca gordura hepática

Até hoje, a responsabilidade pelo problema era atribuída apenas à obesidade e ao diabetes

postado em 04/02/2012 08:00
Se, em um computador, a energia necessária para funcionar adequadamente vem da eletricidade, no corpo humano ela é proveniente dos alimentos, que passam por uma série de transformações químicas a fim de serem separados em cada um dos nutrientes necessários para que as células continuem atuando como devem.

Esse conversor energético do corpo é o metabolismo, que, quando não funciona corretamente, pode causar uma série de problemas de saúde. Uma das doenças causadas por um distúrbio na hora de metabolizar açúcares e gorduras é a doença hepática gordurosa não alcoólica (DHGNA). O nome, longo e complicado, pode ser resumido como ;gordura no fígado;, patologia que afeta de 10% a 30% da população mundial e que pode evoluir para a cirrose não alcoólica. Além de hábitos alimentares incorretos, quem sofre com a doença agora também pode culpar um gene defeituoso por provocar esse mal.

Normalmente associada a obesos e diabéticos ; já que o mal acomete cerca de 60% das pessoas com obesidade e 70% das com diabetes tipo 2 ;, a DHGNA também pode aparecer em quem é magro e com níveis normais de açúcar no sangue. De acordo com um estudo da Universidade de Utah e da Universidade da Califórnia em São Franciso (UCSF) feito com peixes-zebra e publicado nesta semana na revista Genes & Development, uma mutação do gene transportador de soluto 16a6a (Slc16a6a) ativa a acumulação de gordura, triglicerídeos e colesterol no fígado, o que explica a ocorrência da patologia.

;Buscamos identificar novos genes que participam do metabolismo de lipídios no fígado. Analisamos larvas de peixes-zebra em busca de animais que têm muita gordura nesse órgão. Encontramos uma família que tem um defeito genético no Slc16a6a, unidade que decodifica uma proteína responsável por transportar nutrientes durante o jejum (veja infografia);, descreve o autor do estudo Amnon Schlegel, pesquisador do Programa de Medicina Molecular e professor da Escola de Medicina da Universidade de Utah, em entrevista ao Correio. ;Pesquisas em humanos têm associado genes específicos à doença. No entanto, pelo que notamos, está claro para nós que a interação genética com o ambiente é o que provoca o distúrbio;, determina Schlegel.

Enigma
A doença hepática gordurosa não alcoólica, também conhecida como esteatose hepática, foi identificada na década de 1980, mas só começou a preocupar a comunidade médica nos últimos anos, de acordo com a gastrologista e hepatologista do Hospital Universitário de Brasília (HUB) Cintia Mendes Clemente. ;A incidência desse acúmulo de gordura no fígado, que gera uma inflamação no órgão, vem aumentando na população, pelo crescimento do número de obesos com problemas associados, como colesterol alto;, afirma a médica, professora de gastroenterologia da Universidade de Brasília (UnB).

Stéfano Gonçalves Jorge, gastroenterologista e hepatologista do Centro Clínico Castelo, em Campinas (SP), completa que os mecanismos que levam ao armazenamento exagerado de gordura no fígado são complexos, mas envolvem o excesso de lipídios no organismo como um todo e a resistência das células ao hormônio insulina, de modo semelhante ao que ocorre com os diabéticos. ;Nas pessoas magras, doenças genéticas podem levar a uma grande quantidade de gordura no sangue. Além disso, elas podem ter distúrbios na produção, no transporte ou na metabolização de gorduras no interior do órgão;, diz. ;O estudo em questão demonstra essa ideia.;

Validade
Apesar de a pesquisa ter sido feita com peixes-zebra, ela tem validade para humanos porque estudos anteriores mostram que muitas das proteínas conhecidas por controlar o metabolismo de lipídios nas pessoas estão presentes nesses peixes. ;Além disso, desvendamos que, ao introduzir o Slc16a6a humano no animal com mutação, conseguimos reverter a acumulação de gordura;, comemora Schlegel. O autor da pesquisa acredita que ele e sua equipe abriram novas portas para o tratamento de DHGNA, já que o gene pode ser o alvo de terapias contra a cirrose não alcoólica, doenças metabólicas raras e para controlar o diabetes tipo 1 e a obesidade.

Para Jorge, a pesquisa mostra a importância de se investigarem melhor os mecanismos envolvidos no metabolismo das gorduras. ;Com a epidemia de obesidade, a tendência dos cientistas na área é a de considerar que todas as esteatoses sejam causadas pelo excesso de peso, ignorando os casos de quem nunca foi obeso, não entrou em contato com substâncias tóxicas nem tem resistência à insulina;, critica. Cintia considera o estudo como ;o meio para que se saibam quais indivíduos têm predisposição a desenvolver o problema;. Ele abre caminho para o desenvolvimento de remédios e terapias gênicas que ajudem o paciente a cuidar da doença antes de desenvolver uma cirrose.

O gastroenterologista e hepatologista de Campinas conta que o tratamento da DHGNA é feito com medicamentos que reduzem a absorção de lipídios ou tornam as células mais sensíveis à insulina. A hepatologista do HUB pontua que, mesmo com o possível desenvolvimento de novas terapias contra a doença, a mudança de hábitos é essencial para controlar ou acabar com a esteatose hepática. ;Fazer uma dieta saudável e equilibrada para perder peso é muito importante. Não é necessário retirar certas comidas da alimentação, mas a redução do consumo de gorduras e massas serve para perder peso;, descreve.

O mais frequente
Tipo de diabetes mais comum entre a população, ele ocorre quando o pâncreas produz insulina o tempo inteiro e as células musculares e adiposas, mesmo com a presença do hormônio, não conseguem metabolizar a glicose. O diabetes tipo 2 está relacionado ao sedentarismo e à obesidade. Para tratar a doença, a pessoa deve exercitar-se, alimentar-se corretamente e, se necessário, usar medicamentos orais e injeções de insulina.

Medicação diária
É uma doença autoimune, em que as células produtoras de insulina ; hormônio responsável pela manutenção da taxa de glicose no sangue e nas células ; são destruídas, pois o organismo as reconhece como corpos estranhos. Sem insulina, ou com o hormônio em pouca quantidade, aparece o diabetes tipo 1. Quem tem essa doença precisa tomar injeções hormonais todos os dias.


TRÊS PERGUNTAS PARA

Amnon Schlegel, pesquisador do Programa de Medicina Molecular e professor da Escola de Medicina da Universidade de Utah

Qual é a função dos corpos cetônicos no organismo?
Os corpos cetônicos são nutrientes essenciais que ajudam os vertebrados a sobreviverem ao jejum. Na ausência de alimentos, as taxas de açúcar no sangue (glucose) caem, enquanto a quantidade de ácidos graxos derivados de triglicérides armazenados no tecido adiposo aumenta. O cérebro não pode queimar ácidos graxos diretamente para produzir energia. Em vez disso, esses compostos são transformados pelo fígado em corpos cetônicos para que o organismo possa usá-los como fonte de energia.

O que causa a doença hepática gordurosa não alcoólica?
Pesquisas sobre como a interação entre os genes e o ambiente contribuem para a doença hepática gordurosa não alcoólica estão apenas emergindo. Há pesquisas em humanos que mostram essa associação, mas a magnitude do efeitos desses genes em um distúrbio tão complexo ainda não está bem definida. Ao contrário das raras doenças "puramente genéticas", não há uma causa única da DHGNA. À medida que o mundo vê o aumento da obesidade nos grupos sociais, fica claro que a interação dos genes com o meio é o que provoca o problema.

Como esse estudo, feito em peixes-zebra, pode ter validade para humanos?
Há dois aspectos. O primeiro é que nós descrevemos um passo no metabolismo de corpos cetônicos que provavelmente ocorre em todos os vertebrados porque o gene humano pôde ser inserido no peixe para "resgatar" o gene defeituoso do animal. O segundo é que nós podemos descobrir famílias raras com mutação no Slc16a6a que dá origem não apenas à DHGNA, mas a um conjunto de doenças raras em que os seres afetados não conseguem produzir corpos cetônicos. Uma causa rara dessas patologias, chamada hipoglicemia hipocetônica, é a deficiência da enzima 3-hidroxi-3-metilglutatil-coenzima A líase. Essa enzima produz o corpo cetônico acetoacetato e há indivíduos no Brasil com essa doença genética.

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