Ciência e Saúde

Médicos desenvolvem uma maneira diferente de lidar com a própria morte

Nana Queiroz
postado em 25/03/2012 08:00
A sala permanece em um silêncio de surpresa. Claudia Silvestrini, 37 anos, contudo, se mantém firme. Repete, para o caso de alguém ter entendido mal: ;Isso mesmo. A morte dos meus sonhos é Alzheimer;. Como uma demência gradual e lenta, que leva invariavelmente à perda total da consciência, pode habitar o imaginário de alguém como a partida ideal deste mundo? Ela responde com tal naturalidade que parece ter ensaiado a frase: ;A razão é uma só: não saber é uma bênção;.

Em seus 10 anos como fisioterapeuta de UTI e semi-UTI no Hospital Santa Lúcia, Cláudia nunca conseguiu desenvolver uma casca dura em relação à morte. Quando fala dos pacientes que partiram, as mãos tremem e os olhos vão ficando marejados, até que uma ou outra lágrima teimosa escapa. A essa altura, eles já são tantos! Teve um paciente que era a cara do pai dela. Existiram ainda outros tantos rostos conhecidos, vozes familiares, cheiros de parentes. Cláudia digeriu tudo conforme eles iam e vinham. Sabendo que um dia ela também vai passar por essa estrada. Sabendo reconhecer os sinais que antecedem a morte. Sabendo. Tudo que ela quer quando chegar a sua vez é libertar-se desse saber.



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No mês passado, um médico americano resolveu investigar a rota dos profissionais de saúde rumo ao além. As conclusões de Ken Murray foram as de que os médicos não morrem como todo mundo. Eles conhecem todos os tratamentos possíveis, em geral, têm acesso aos melhores especialistas e equipamentos, mas não os buscam. Não querem saber de medidas heróicas como ressuscitação, entubamento e vida sustentada por aparelhos. Em vez disso, optam por partir suavemente. Antes, mas com mais dignidade. "Claro que os médicos, como todos nós, querem viver. Mas eles sabem o suficiente sobre medicina moderna para conhecer seus limites", explica Murray. "Além disso, profissionais de saúde já viram a que ponto o sofrimento de um moribundo pode chegar. Já ouvi de muitos colegas, nos hospitais, a frase ;se um dia eu estiver nessa situação, por favor, me mate;".

A realidade é diferente, a lei é diferente, a medicina extremamente diferente. Mas Murray acredita que esse fenômeno cruza culturas e deve influenciar também os profissionais do Brasil. "Os terapeutas não são imunes aos costumes locais. Vale ressaltar, entretanto, que já fiz entrevistas com britânicos, australianos e até chineses e esses médicos encaram a própria morte de maneira extremamente similar. Ou seja, essa reação parece, de certa forma, universal", argumenta Murray.

Os médicos sofrem mais por culpa do conhecimento que têm sobre as doenças e a morte?
Não se trata só de conhecimento, mas de experiência. Médicos com anos de carreira já viram mortes horríveis, pessoas que viveram o inferno. Em situações assim já ouvi de muitos colegas a seguinte frase ;se você me ver nessa situação algum dia, por favor, me mate;. Isso é verdade, não estou brincando nem exagerando. Quanto mais experiências deste tipo alguém viveu, creio que mais forte é seu posicionamento.

E a cultura, afeta isso de alguma maneira?
A cultura está envolvida. Durante a minha pesquisa nos Estados Unidos, me deparei com um fenômeno bastante interessante, que me chocou. Houve um levantamento sobre o quanto as pessoas estavam dispostas a respeitar o desejo do paciente de não ser ressuscitado quando têm uma doença terminal. O que descobriram foi brancos respeitavam a decisão seis vezes mais que os negros. Uma possível explicação para isso é que, nos EUA, negros quase não têm acesso a tratamento médico então, quando têm, eles querem usá-lo ao máximo. O mais impressionante, contudo, é que quando analisaram a mesma questão em um grupo de médicos, descobriram que o dado era exatamente o mesmo. Eu pensei que a educação e o treinamento médico ; que foram idênticos para negros e brancos ; teriam nivelado suas decisões, mas não. A cultura ainda falava mais alto. Logo, poderia o fator cultural causar diferenças de postura quanto a morte nos EUA e no Brasil? Certamente. De que maneira? Isso já não sei. Vale ressaltar, entretanto, que já fiz entrevistas com britânicos, australianos e até chineses e, por incrível que pareça, esses médicos vivem um fenômeno parecido. Ou seja, essa reação à morte parece cruzar culturas, mas a intensidade com que acontece em cada uma delas, eu já não sei.

No Brasil não existe o hábito de deixar seus desejos quanto à morte expressos em lei. E os médicos que tenho entrevistado sequer falam do assunto com suas famílias. Como você explicaria isso?
Nos Estados Unidos passamos por uma fase do tipo há uns 40 anos. Ninguém falava sobre a morte, era um tabu. Também não tínhamos a estrutura legal que temos hoje para tomar decisões sobre a morte. O que acontecia é essa decisão era deixada para a família e para o médico. Hoje, encaramos esse assunto como uma decisão do paciente. Não sei dizer o que é melhor, mas tendo a defender que os pacientes decidam isso com antecedência. Para mim a coisa mais trágica que pode acontecer a alguém é passar por um processo de morte que não é o que ela deseja. Infelizmente, isso acontece muito frequentemente.

Por que você decidiu pesquisar esse assunto?
Eu tinha observado durante meus anos de medicina que nenhum dos meus colegas que tinham doenças terminais morreram no hospital, mas em casa. E como lido com pacientes que passam pelo processo da morte, percebi que com eles era diferente. Discuti o tema com alguns amigos e havia um consenso de que esse processo existia.

Alguns médicos brasileiros relatam que há um problema em como os médicos são educados. Eles têm uma formação baseada na cura e não em lidar com a morte inevitável, como se fossem superheróis. Nos Estados Unidos os estudantes vivem o mesmo problema?
A educação médica é praticamente a mesma ao redor do mundo. A medicina moderna é baseada em um modelo criado por William Osler, há 100 anos, na Escola de Medicina Johns Hopkins que foi mais tarde apropriado em todo o mundo. Ou seja, as universidades tem hoje, todas, praticamente o mesmo método de ensino. Não encontro dificuldades, por exemplo, em interagir com médicos de nenhuma parte do mundo pois temos uma educação comum.

Qual a morte dos seus sonhos?
Antes de responder vou contar uma coisa: por muitos anos, eu fazia essa mesma pergunta para todos os pacientes acima de 50 anos que entrassem pelo meu consultório. E a explicação que eu dava para eles era: ;eu quero ter certeza que saberei respeitar seus desejos se chegar a uma situação em que eu tenha que decidir por você;. Agora, sobre mim, a resposta é a mesma que ouvi da maioria deles: eu gostaria de ir dormir e nunca acordar.

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